Do triunfo da política ao estado dos juízes. Memórias de um partido
desconhecido
«(…) Tentar explicar esses fenómenos de um
passado recente, para compreender o presente, é um dos objectivos deste livro.
Mas, como não poderia deixar de ser, escrever sobre o PS durante este período
sem falar dos seus principais protagonistas tomaria impossível alcançar essa
meta. Entre eles destacam-se duas personalidades distintas e a relação de amor e ódio que, em grande parte,
determinaria o actual PS: Mário Soares e Francisco Salgado Zenha. O primeiro
deixaria marcas profundas que continuarão a caracterizar o PS por muito tempo.
De Salgado Zenha este partido herdaria a consciência
moral que ainda lhe resta. Mário Soares seria eleito Presidente da
República e Salgado Zenha abandonaria o partido, incompatibilizado com o seu velho amigo. Durante algum tempo, o PS
iria ser um barco à deriva. Recuperaria eleitoralmente, contudo, com o seu actual
líder, António Guterres. Mas, curiosamente, essa recuperação só aconteceria
quando este fiel discípulo de Zenha se converteu ao soarismo. Por isso mesmo, esta interessante simbiose das
personalidades daqueles dois principais personagens será agora examinada à lupa
no novo PS, para ver se ele segue o caminho da consciência moral do seu velho protector, ou o caminho do absolutismo monárquico e das facilidades
do seu favorito ex-inimigo. Para já, é evidente que o actual secretário-geral
do PS, já em 1976 responsável com
Edmundo Pedro, Soares Louro e Santos Ferreira pela campanha eleitoral do PS,
conhece bem as dependências internacionais do seu partido e até, à semelhança
do seu antecessor, trata-se por tu com
pelo menos seis primeiros-ministros europeus. Vamos ver para crer, como diz o ditado, mas,
pelos primeiros indícios, temo que, do mesmo modo que Soares meteria o
socialismo na gaveta, Guterres venha a meter a consciência moral do PS no congelador. O que é um mau sinal para a
democracia. Que não terá futuro se o passado não estiver esclarecido e o futuro
continuar a depender de bodes expiatórios. O meu livro, ajudará a compreender
como o triunfo de alguns se faria à custa do sacrifício dê outros. O estado dos juízes está atento ao passado dos actuais políticos
e não hesitará, no momento oportuno, em colaborar para a sua decomposição.
Eu entrei para a política quase por acaso.
Aderi nos anos 60 à minúscula Acção Socialista Portuguesa por acreditar
que, pela via do socialismo democrático e através de um sistema
pluripartidário, Portugal viria a ser um país igual ou melhor que aquele onde
vivia exilado, a Suécia, e que era então considerado, acertadamente, a
sociedade mais justa e mais evoluída do planeta. Não o socialismo utópico,
igualitário, de partido único que transforma os cidadãos em funcionários do
estado. O socialismo onde os partidos se combatem no campo das ideias e onde os
interesses e bem-estar dos cidadãos estão sempre em primeiro lugar. Onde os
partidos políticos são a espinha dorsal do sistema e os instrumentos para a sua
modificação democrática e não o instrumento de promoção pessoal dos seus
dirigentes. Mas, infelizmente, e daí a outra razão de ser deste meu livro,
Portugal parece estar a perder essa importante batalha da democracia. Isso
atestam o crescente branqueamento da História e falta de transparência das instituições.
A Europa, berço da amálgama de culturas e conflitos que deram origem ao que é hoje
vulgarmente apelidado de civilização
ocidental, nunca produziu um modelo perfeito de democracia que garanta aos
seus cidadãos a igualdade de acesso à educação, ao trabalho, à saúde e à
justiça. Entretanto, alguns países, sobretudo a norte, conseguiram ao longo dos
anos conquistas importantes naquelas áreas, com base numa considerável evolução
do conceito de respeito pelos direitos humanos, dos direitos dos animais e da
natureza. A vitória dos Aliados na Segunda Guerra Mundial, a criação da
Organização do Tratado do Atlântico Norte, o lançamento dos alicerces da União Europeia
não viabilizariam, contudo, o acesso dos países do Sul ao fenómeno de
desenvolvimento dos seus vizinhos mais a norte e, até meados dos anos 70, a
Europa viveu num clima de completa desunião. Entre democracias mais ou menos
formais no Norte e Centro, ditaduras medíocres e subservientes de inspiração cristã na Península Ibérica, uma
ditadura militar com reminiscências pan-arábicas na Grécia e uma imensidão de
regimes comunistas totalitários e despóticos, proclamados pela via
revolucionária em nome da classe operária, a Leste.
O início da luta dos Movimentos de
Libertação contra o colonialismo português na Guiné, em Moçambique e em
Angola, empurrados pela miopia e desinteresse ocidental para os braços da União
Soviética, dariam lugar ao chamado Movimento
dos Capitães que a 25 de Abril derrubaria, para surpresa de todos, dentro e
fora de Portugal, a ditadura iniciada com o Estado Novo, em 1933, por António Oliveira Salazar. Este
levantamento pacífico e sem objectivos políticos claros, provocado quer por razões
de natureza sindical, quer pela derrota psicológica dos militares portugueses
nas guerras coloniais, viria a influenciar a evolução política mundial deste
fim de século. Durante mais de uma década, até à entrada de Portugal como
membro de pleno direito na Comunidade Europeia, em 1986, o nosso pequeno e subdesenvolvido país, até então quase esquecido do seu contexto europeu,
mobilizaria de forma inédita todas as atenções mundiais com a sua Revolução dos Cravos e teria
reflexos profundos na Europa e no Mundo. A nossa
revolução seria quase instantaneamente adoptada
por praticamente todas as forças democráticas internacionais, tendo-se democratas
cristãos, liberais, socialistas e até comunistas em todas as suas imagináveis versões,
em determinados momentos e por diferentes motivos, considerado próximos do
nosso 25 de Abril. Para o PS,
que protagonizaria de certo modo os aspectos positivos da Revolução e que
imprimiria a sua marca ao sistema político constitucional vigente, esta seria
também a sua década dourada. Em Abril de 1974,
a social-democracia europeia entra na sua fase de apogeu. Partidos filiados na
Internacional Socialista, a que o PS português também pertence, estão então no
governo na Alemanha Federal, Áustria, Bélgica, Dinamarca, Finlândia, Grã-Bretanha,
Holanda, Israel, Luxemburgo, Noruega e Suécia. Na Escandinávia, os movimentos sociais-democratas
de inspiração sindical começam a desprender-se do conservadorismo em que a sua dependência operária os lançara e a ansiar por um maior protagonismo
internacional. Na Grã-Bretanha, a onda de revolução social da segunda metade
dos anos 60 contra o chamado establishment reabre as portas ao
Partido Trabalhista liderado por Harold Wilson, que se mostra impotente para
travar a vaga que transformaria aquele partido, tradicionalmente moderado, num
dos mais radicais da Internacional Socialista. Na Alemanha, a democracia controlada do pós-guerra deu lugar a um novo Partido Social-Democrata com forte
liderança de Willy Brandt e Helmut Schmidt os quais, apesar das nuances entre
si, tinham o objectivo comum de transformar novamente a Alemanha num país
unificado e no motor da Europa. Na Áustria, com Bruno Kreisky, na Holanda, com
Joop den Uyl, na Bélgica e até na Itália, graças à ameaça do PC de Enrico
Berlinguer, emergem igualmente partidos sociais-democratas dispostos a dar nova
cara ao socialismo. Socialismo até então caracterizado essencialmente pelo seu
eurocentrismo». In Rui Mateus, Contos Proibidos, Publicações
Dom Quixote, Lisboa, 1996, ISBN 972-20-1316-5.
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