Todos os Nomes. A génese da grande fronteira
«(…) Os Francos teriam ainda chegado a conquistar Tarraco e Tortosa,
mas, por força do referido acordo ou reconhecendo a impossibilidade de se manterem
em tão agressiva posição de domínio da foz do Ebro, não tardaram a recuar
destas cidades, para concentrar recursos, e reforçar a defesa de Barcelona, na
linha do rio Llobregat. Durante mais de três séculos, uma longa faixa
territorial, contornando o caudal deste rio e todo o extremo pirenaico do grande
planalto, seria a estável fronteira entre essas duas tão diferentes civilizações.
Fronteira esta que é um desses factos verdadeiramente marcantes das dinâmicas
de longa duração e da evoluço lenta das estruturas. Nos territoria que agora se organizam como Marca hispânica do Império Carolíngio,
com população relativamente escassa e muito dispersa, acentuam-se as tendências
de um processo de ruralização da sociedade. Uma vida urbana reduzida ao mínimo
e onde, praticamente, desapareceu a circulação monetária. Pequenas comunidades
de pastores e camponeses, fechadas nos estreitos vales, em virtude das comunicações
particularmente difíceis, praticam uma rudimentar economia agrícola muito pouco
orientada para a troca.
Pelo contrário, nesses outros territórios da Marca superior do Al-Andaluz,
nem as turbulentas particularidades de uma sociedade de fronteira conseguem
esbater o grande contraste, resultante de uma integração nesse imenso mundo
muçulmano em franca expansão económica e com intensa circulação de boas moedas
de ouro (dinar) e de prata (dirhem). A islamização, à semelhança da
romanização, renova a vida urbana e reativa uma grande rede de trocas. Há um
significativo número de cidades bastante populosas. As capitais tornam-se mesmo
grandes metrópoles. Mercados para onde é possível escoar excedentes, o que
incentiva actividades agrícolas mais produtivas. De lembrar, ainda, essa
evidência, não menos fundamental por se ter tornado um lugar-comum, de que a
fronteira tanto separa como une. Uma ligação que podemos facilmente ilustrar,
por exemplo, com um dos primeiros governadores cristãos documentados em
Pamplona, Inigo Arista († 851),
que sabemos ser irmão uterino de Muza ibn Muza († 862), dos Banu Qasi, proeminente
família muwallad, isto é,
descendente de antigos hispanos convertidos ao islão. Os Banu Qasi eram
descendentes do conde Casio, que, logo após a sua precoce conversão, se
tornaram clientes dos emires omíadas, acumulando crescente riqueza e poder no
desempenho dos mais altos cargos da administração regional muçulmana,
nomeadamente em Borja e Tudela. Mais adiante, encontraremos várias figuras desta
família, ao longo de gerações e com acção disseminada um pouco por todo o vale
do Ebro; e sabe-se também que este Muza II, filho de Muza ibn Qasi, viria a
casar com uma sobrinha, Ossona, filha desse seu meio-irmão Inigo Arista.
O esplendor civilizacional do Sul islamizado seduz e projecta
influências sobre o Norte cristão. Lembramos aquele pitoresco caso do conde de
Castela, Sancho Garcia (995-1017), que por vezes se vestia ao uso oriental e tinha na sua corre cantoras
e dançarinas oferecidas pelo califa de Córdova. E outros exemplos há, tão
surpreendentes, como o de um rei cristão da viragem do século XI para o século
XII, Pedro I de Aragão e Navarra, que valida habitualmente os documentos com a
subscrição do seu nome em escrita árabe; ou tão polémicos, como o da admitida influência
da poesia popular andaluza dos séculos X e XI, do zayal ou zéjel com o seu
acompanhamento musical, nas poesias e cantares das cortes aquitano-provençais,
catalãs, castelhanas e galaico-portuguesas. O renascimento urbano do século XI
passará também por uma forçosa integração no sistema monetário do grande comércio
internacional. As primeiras cunhagens de moeda áurea cristã reproduzem os
dinares muçulmanos.
Pequenas luzes na escuridão das montanhas
É basicamente errada a ideia de uma rápida ocupação militar desses
territórios de recente conquista e daqueles vales dos Pirenéus, desde então
mais claramente subtraídos ao domínio islâmico. Por imperativos geográficos, uma
vez que era virtualmente impossível estabelecer comunicações entre todos esses
vales (separados por cumes muito elevados e por inúmeras correntes,
frequentemente violentas, dos rios e ribeiros de alta montanha), bem como,
possivelmente, por certo sentido político, que aconselharia a não instituir um
único poder, as novas extensões da fronteira carolíngia, logo no início do
século IX, surgem-nos divididas em vários condados. Não obstante, o Império
terá permanentes dificuldades para controlar esse verdadeiro mosaico de poderes
e, ao fim de poucas décadas, todos os condados eram de facto independentes. Os
redactores das mais antigas fontes narrativas dedicaram uma especial atenção ao
registo dos nomes, e respectivas filiações, desses primeiros condes. Dados
preciosos, de lacónica informação, que laboriosas investigações, da mais
apurada erudição historiográfica, transformaram numa reconstituição desse
quadro, de muito densa leitura, actualmente ao nosso dispor.
No imediato da conquista parece optar-se por uma solução integradora. Reconhecem-se
chefes e aristocracias tribais, nas mais arcaicas regiões montanhosas, e
figuras da nobreza regional hispânica ou visigoda, nos territórios litorais
mais romanizados. Cedo se receia, porém, tudo quanto decorre de uma algo frágil
articulação política, com governos que facilmente podiam autonomizar-se do
Império. As complexas relações de uma relativa coexistência pacífica com os
muçulmanos suscitam naturais desconfianças na corte carolíngia, aonde, logo em 820, será chamado o conde Bera,
primeiro governador dos condados de Barcelona e Gerona, obrigado a
responder às mais graves acusações de deslealdade e traição. Para esses
condados da primeira linha da Marca são então destacados alguns condes francos,
ligados ao rei por laços da mais estreita fidelidade, o que, no entanto, não
evitará novas formas de conflito, uma vez que os mesmos laços os envolvem directamente
nas dissensões que começam a manifestar-se no seio da própria família régia. No
saldo da primeira revolta dos herdeiros de Luís, o Piedoso (814-840), o conde Bernardo da
Septimânia, que desde 826 governava
Barcelona, foi aqui substituído pelo conde Berenguer de Toulouse, facto que,
por sua vez, dará origem a uma imediata fractura de toda a aristocracia
regional em dois grandes partidos rivais.
A instabilidade manifesta-se também nos condados pirenaicos. Em Pamplona
persiste uma forte resistência face às repetidas tentativas de estabelecer um
condado vinculado à monarquia franca. Segundo Garcia Cortázar, as fontes árabes
distinguem perfeitamente os baskunis,
que habitavam o território de Pamplona, chefiados agora pela família dos Arista, que, como vimos, estabelecem estreitas
relações com os Banu Qasi, representantes regionais do emir, e os glaskiyun (ou gascões) dos
vizinhos territórios de Leire e dos vales mais ocidentais de Aragão, chefiados
pela família dos Velasco, um pouco mais romanizada, talvez, e mais próxima da
influência carolíngia. A violenta rebelião de 799, que chacina a guarnição muçulmana do reduto de Pamplona e mata
o próprio governador Mutarrif ibn Muza, seria assim um necessário golpe de
força para fazer recair o poder na família dos Velasco, apoiada no poderio
franco». In Nuno Pizarro Dias, Dona Dulce de Barcelona ([1153-1159]-1198), As
Primeiras Rainhas, Círculo de Leitores, 2012, ISBN 978-972-42-4703-8.
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