domingo, 21 de dezembro de 2014

Estudos sobre a Ordem de Avis. Séculos XII-XV. Maria Cristina A. Cunha. «Afonso Henriques estava interessado em promover um grupo militar organizado, fiel ao seu serviço e que de algum modo tapasse a brecha deixada por Geraldo Sem Pavor. Ou, o rei pretendesse fomentar a implantação de monges cistercienses em território recém conquistado?»

jdact

A Ordem de Avis e a monarquia portuguesa até ao final do reinado de Dinis I
«(…) Para tal socorremo-nos essencialmente dos pergaminhos que se encontram depositados na Torre do Tombo provenientes do antigo cartório da Ordem, bem como de outros diplomas, nomeadamente os das diferentes Chancelarias régias, num âmbito cronológico que vai desde a fundação da Ordem (1175-1176) até ao final do mestrado de Vasco Afonso (1329). Se a escolha da data inicial é óbvia, o termo do período a estudar está relacionado com o fim do reinado de Dinis I e também com o fim de uma fase de organização interna da Ordem e o início de uma outra, esta de rentabilização do património que ia sendo adquirido. Não creio ser necessário referir em que circunstâncias a Ordem militar de Avis foi criada. Ruy Pinto Azevedo fê-lo já há alguns anos, tendo atribuído ao rei Afonso Henriques a ideia de dotar a cidade de Évora, à data o mais avançado bastião da reconquista cristã na Península, com uma instituição do tipo monástico-militar, tal como se fizera uns anos antes para os reinos de Leão e Castela nas praças fortes de Calatrava e Uclés. O mesmo autor acrescenta que a concretização deste projecto foi um êxito como o demonstram as liberalidades e o aturado carinho deste monarca e de seu filho Sancho I para com o mestre e freires eborenses em anos sucessivos. Tanto quanto nos é dado conhecer pela documentação existente, esta última afirmação de Pinto Azevedo carece de exactidão: de facto, só chegaram aos nossos dias uns poucos documentos comprovativos de doações afonsinas e referentes a bens que podemos considerar modestos (vinhas e casas em Évora e casas em Santarém). A única excepção é o castelo de Coruche, doado em Abril de 1181, graça que, no entanto, não incluía o senhorio daquela localidade: por essa razão, em 1182 é o monarca, e não a Ordem, quem concede carta de foral aos seus habitantes. Para além da isenção do pagamento de portagem e alcaidaria dos mouros e gado que vendessem em Évora, a milícia apenas vai contar com mais alguns direitos em Coruche em 1248, nomeadamente a percepção dos direitos eclesiásticos inerentes ao padroado das Igrejas desta localidade. É possível que à data da morte de Afonso Henriques, o cômputo dos bens da milícia fosse superior ao que a documentação avulsa indica, mas nada nos leva a supor que o carinho, para usar a expressão de Pinto Azevedo, do nosso primeiro rei tenha redundado numa ampla dotação aos freires eborenses!
Posta a questão nestes termos, parece-nos pertinente perguntar qual seria o principal objectivo do monarca ao criar a milícia de Évora. Ou seja, Afonso Henriques estava interessado em promover um grupo militar organizado, fiel ao seu serviço e que de algum modo tapasse a brecha deixada por Geraldo Sem Pavor, como sugeriu Pinto Azevedo? Ou, por outro lado, não seria possível que o rei pretendesse fomentar a implantação de monges cistercienses em território recém conquistado? Se a primeira hipótese nos parece demasiado simplista, a segunda peca, a nosso ver, por tentar dar à Ordem um forte pendor de religiosidade que nos parece nunca ter tido: os freires eborenses foram sempre, antes de mais, cavaleiros (portanto, homens com funções militares) que viviam sob uma regra religiosa, a de S. Bento, que tinha como principal função não só o dar uma razão válida para a guerra que praticavam, como sobretudo facilitar a vida em comum de um grupo mais ou menos numeroso de homens. Dada a escassez de documentos, acrescida da exiguidade de informação que encerra cada diploma, não nos é possível adiantar uma hipótese conclusiva. De facto, apenas a primeira doação de Afonso Henriques, datada de 1176 nos dá como que uma solução de compromisso, no endereço ou inscrição do diploma, o rei refere-se ao Mestre Gonçalo Viegas e aos seus freires como Ordinem Sancti Benedicti ... tenentibus (aludindo, portanto, à sua condição religiosa), mas nos motivos que o levam a fazer a doação o factor militar surge já com certa evidência: considerans salutem anime et utilitatem christianis et defensionem regni.
Tal como acontece relativamente ao reinado de Afonso Henriques, os diplomas de Sancho I são, além de muito poucos, praticamente omissos quanto aos motivos que levaram à criação da milícia. São, no entanto, mais numerosos os diplomas indicadores de uma protecção da milícia por parte do poder régio, dada em troca de serviço, pensamos que militar, por parte dos freires. Assim, e por exemplo, a doação do castelo de Mafra (não da vila que foi doada pouco tempo depois ao bispo Nicolau, bispo de Silves) refere o que nos parece ser a razão de existir da Ordem pelo menos até ao fim da Reconquista: o serviço do rei. A expressão pro bono servicio quod nobis fecistis et faciatis, apesar de vulgar nos documentos da época, poderá apontar nesse sentido. Do mesmo modo, a doação de Alcanede, Alpedriz e do castelo de Juromenha, este si mihi eum Deus dederit, porque ainda não estava conquistado, é feita com a condição de ut mihi semper et universo semini meo in regno succedenti cum eis fideliter seruiatis. Provavelmente, com ideia de auxiliar os cavaleiros na sua função, o rei deixa, no seu testamento, ao Mestre e freires de Évora 5000 maravedis, assim como cavalos, mulas de sela e azémulas». In Maria Cristina A. Cunha, Estudos sobre a Ordem de Avis, séculos XII-XV, Faculdade de Letras, Biblioteca Digital, Porto, 2009.

Mateus! Que estejas na Paz.

Cortesia da FL do Porto/JDACT