domingo, 21 de dezembro de 2014

Lágrimas de Ametista. Maria Mar Carvalho. «Mas a vida é uma miragem que é preciso viver, há quem nos mande morrer, chamando isso, coragem! Mas manda o poder da força e é ele que traça a vida de quem antes de nascer lá traz a sentença lida»

jdact

Viagem
«Quisera ser a gaivota que livre voa,
ou o vento que apressado corre…
Quisera ser o mar que longínquo ecoa,
e o lírio silvestre que cortado morre.
Tudo é etéreo cercado de espuma,
tudo é passante na terra que gira,
tudo envolto em nuvens de bruma,
no som distante de uma velha lira.
Tudo no mundo é uma coisa linda,
e ninguém sabe como lá chegar,
e para lá dessa coisa ainda,
há muito mais para desbravar.
Alguém escreveu a verdade na areia,
e o mar, cioso, depressa apagou
para que o homem sue o que semeia,
e vá parir com dor o que a terra gerou.
Comerás o pão com o suor do teu rosto
ficou escrito nas tábuas da lei,
a uma esperança segue-se um desgosto,
porque a desdita não poupa ninguém.
Quisera servir este mundo louco,
me ofertar tudo com amor total,
mas e que eu dê é sempre tão pouco,
e a intolerância um terrível mal.
Eu me esforço de corpo inteiro,
que os outros possam tudo aproveitar,
depois me lancem a um braseiro,
a um fogo vivo a purificar.


Olhando as cinzas, na mão aberta,
deixa que o vento as vá espalhar,
é que na morte redescoberta,
uma outra vida começa a brotar.
Não chorem, loucos, que não morri!
Passei na vida sempre a viajar,
é preciso que haja uma morte aqui,
para que a vida possa renovar.
Eu sei que fica uma lembrança querida,
longa saudade da separação,
mas é na morte que se gera a vida,
e o desespero é uma oração.
E sou a gaivota que livre voa,
e a giesta de Maio em flor,
e sou o mar que, em verde, ecoa,
compondo a nova dimensão do amor».
Poema de Maria Mar Carvalho, in ‘Lágrimas de Ametista, 1989

JDACT