O Tempo de Meu Pai
«(…) Ainda eu não tinha vindo ao mundo e já a esperança que eu
era se encontrava no centro de um drama. O facto de o saber devo-o ao que me
contou a minha mãe, quando eu tinha dez anos. Nesse dia estávamos na nossa casa
do Palatino, muito próxima da residência imperial. Mas não era para aí que se dirigiam
os nossos olhares, era para a outra margem do Tibre, aquela que o meu tio
Cláudio teimava em chamar a margem etrusca. Um dia acabaria por me dizer a
razão disso, durante uma conversa memorável, que tivemos longe de Roma, e que contarei
a seu tempo. A minha mãe estava fatigada, o seu semblante estava tenso. Ela,
que normalmente era cheia de energia, estava, nesse dia, a repousar num divã,
numa sala grande da casa. Deixava o olhar errar pelos pinheiros do Janículo e
pela folhagem dos jardins que desciam pela encosta da colina até à margem do rio.
Estávamos no Inverno, quase no início da Primavera. Algumas nuvens vindas do
Ocidente obscureciam o dia. Mas eu sabia que a cor do céu e o tempo que fazia
não eram suficientes para derrubar assim a coragem da minha mãe, para ensombrar
o seu humor. Seriam as notícias que eu ouvira, de manhã, o processo que no
senado decorria contra um homem que conhecíamos bem, aquele Cordo, cuja filha mais tarde viria a ser uma das nossas
amigas? Eu não sabia ao certo de que era acusado Cordo. Apenas sabia
que o senado o condenara. Depois de ter permanecido silenciosa por algum tempo,
a minha mãe fez-me vir para junto dela, tomou a minha mão e disse-me: Como desejaria minha filha, que não
conhecesses dias como os que vivo neste momento. Estes dias de solidão, nesta casa
desolada, com tantas recordações! É tudo o que me resta. Por vezes, voltam a
mim, como nuvens de pássaros, que voam sobre a minha cabeça e me escondem o
céu! Como gostaria de as lembrar com aquele que as partilhou comigo. Ajudas-me a
fazer com que elas não sejam para mim mais do que horríveis pesadelos?
Eu não compreendia muito bem o que a minha mãe queria dizer,
mas sentia que o passado era, naquele dia, demasiado pesado para que ela
pudesse suportar o seu peso sozinha. Então, eu aninhei-me junto dela enquanto
as nuvens continuavam o seu caminho e me pareciam que se tornavam menos ameaçadoras,
que anunciavam, talvez não a neve do Inverno, mas os aguaceiros vivificantes da
Primavera. Lembras-te, talvez, disse
a minha mãe, quando o teu pai e eu
estávamos na Gália, quando morreu o deus Augusto. Ele tinha recebido o comando
de todas as legiões da Gália e da Germânia. Esse comando, ele não o exercia
directamente, e como não tinha de partir em missão militar, eu acompanhei-o. O
seu trabalho era mais o de um administrador civil do que o de um soldado.
Consistia em fazer o censo dos Gauleses, tu sabes o que é, elaborar a lista dos
proprietários, com a quantidade dos seus rendimentos , Para repartir o imposto...
Ouvia a minha mãe apenas por um ouvido.
O quê? Aquele herói, pelo menos assim o pensava, conservado
piedosamente naquele quarto, a coroa de louros que levara aquando do seu triunfo,
aquele general magnífico que eu vira nesse dia em toda a sua glória, havia
dedicado meses e meses a desempenhar
esse papel de intendente? Em nossa casa, tais ocupações eram para os
libertos.
A minha atenção desviara-se um pouco, enquanto a minha mãe
continuava a falar: ...então,
subitamente, soube-se que Augusto morrera e, em algumas guarnições, os soldados
amotinaram-se. Naturalmente, era uma falta grave, um crime. Faltavam ao seu
juramento. Eu indignei-me, disse-o a Germânico, que, sem lhes dar razão, se
tornou até um certo ponto o seu advogado diante de mim, no segredo da nossa
casa, o quartel-general... A minha mãe parou de falar. Revivia a cena,
reencontrava as palavras do discurso, com uma espécie de alegria que dava ao
seu rosto a animação que um momento antes estava ausente, e eu estava mais
interessada e comovida por aquela metamorfose, que eu percebia que se devia
mais ao amor que ela jamais deixara de sentir pelo marido, que às palavras do
meu pai. É verdade, dizia Germânico, é imperdoável, mas muitos deles servem o
exército há já trinta anos e nada lhes permite antever que um dia voltem a ser
homens livres. A sua única perspectiva é a de morrer em serviço, nos campos
onde, como sabes, a disciplina é dura, onde não encontram qualquer dos encantos
da vida. Augusto acaba de morrer. Era o seu chefe, o seu imperator.
Alguns conheceram-no, noutros tempos. Mas, há já muito tempo que ele não era
mais do que um simples nome. Não se podia esperar que ele viesse
apresentar-se-lhes. Tinha mais de setenta e cinco anos. E, no entanto, era a
ele que estavam ligados, a ele que prestaram juramento... Tudo aquilo me
aborrecia um pouco. Perguntava a mim mesma, vagamente, por que razão o facto de
se ter pronunciado, um dia, algumas palavras endereçadas a um homem, isso se tornava
um laço que nada mais podia romper. Até
mesmo a morte? Mas a de quem?
A do soldado ou a do imperator?
Passar-se-ia o mesmo nas relações
entre homens e mulheres?» In Pierre Grimal, Memórias de Agripina, Lyon
Edições, Romances Históricos, 2000, ISBN 972-8461-51-8.
Cortesia Lyon E./JDACT