«Trabalhar com nobreza, esperar com sinceridade, enternecer-se com o
homem, esta é a verdadeira filosofia». In Fernando Pessoa
«(…) Quinto concurso de beleza infantil, meia página de retratos de
criancinhas, nuazinhas de todo, ao léu os refegos, alimentadas a farinha
lacto-búlgara, alguns destes bebés se tornarão criminosos, vadios e prostitutas
por assim terem sido expostos, na tenra idade, ao olhar grosseiro do vulgo, que
não respeita inocências, Prosseguem as operações na Etiópia, e do Brasil que
notícias temos, sem novidade, tudo acabado, Avanço geral das tropas italianas,
não há força humana capaz de travar o soldado italiano na sua heróica
arrancada, que faria, que fará contra ele a lazarina
abexim, a pobre lança, a mísera catana, O advogado da famosa atleta
anunciou que a sua constituinte se submeteu a uma importante operação para
mudar de sexo, dentro de poucos dias será um homem autêntico, como de
nascimento, já agora não se esqueçam de mudar-lhe também o nome, que nome, Bocage
perante o Tribunal do Santo Ofício (maldito),
quadro do pintor Fernando Santos, belas artes por cá se fazem, No Coliseu está A Última Maravilha com a azougada
e escultural Vanise Meireles, estrela brasileira, tem graça, no Brasil nunca
dei por ela, culpa minha, aqui a três escudos a geral, fauteuil a partir de cinco, em duas sessões, matinée aos domingos,
O Politeama leva As Cruzadas,
assombroso filme histórico, Em Port-Said desembarcaram numerosos contingentes
ingleses, tem cada tempo as suas cruzadas, estas são as de hoje, constando que
seguiram para a fronteira da Líbia italiana, Lista de portugueses falecidos no
Brasil na primeira quinzena de Dezembro, pelos nomes não conheço ninguém, não
tenho que sentir desgosto, não preciso pôr luto, mas realmente morrem muitos
portugueses por lá, Bodos aos pobres por todo o país de cá, ceia melhorada nos
asilos, que bem tratados são em Portugal os macróbios, bem tratada a infância
desvalida, florinhas da rua, e esta notícia, O presidente da câmara do Porto
telegrafou ao ministro do Interior, em sessão de hoje a câmara municipal da
minha presidência apreciando o decreto de auxílio aos pobres no inverno
resolveu saudar vossa excelência por esta iniciativa de tão singular beleza, e outras,
Fontes de chafurdo cheias de dejectos de gado, lavra a varíola em Lebução e
Fatela, há gripe em Portalegre e febre tifóide em Valbom, morreu de
bexigas uma rapariga de dezasseis anos, pastoril florinha, campestre, lírio tão
cedo cortado cruelmente, Tenho uma cadela fox, não pura, que já teve duas
criações, e em qualquer delas foi sempre apanhada a comer os filhos, não
escapou nenhum, diga-me senhor redactor o que devo fazer, O canibalismo das
cadelas, prezado leitor e consulente, é no geral devido ao mau arraçoamento
durante a gestação, com insuficiência de carne, deve-se-lhe dar comida em
abundância, em que a carne entre como base, mas a que não faltem o leite, o pão
e os legumes, enfim, uma alimentação completa, se mesmo assim não lhe passar a
balda, não tem cura, mate-a ou não a deixe cobrir, que se avenha com o cio, ou
mande capá-la. Agora imaginemos nós que as mulheres mal arraçoadas durante a
gravidez, e é o mais do comum, sem carne, sem leite, algum pão e couves, se
punham também a comer os filhos, e, tendo imaginado e verificado que tal não
acontece, torna-se afinal fácil distinguir as pessoas dos animais, este
comentário não o acrescentou o redactor, nem Ricardo Reis, que está a pensar
noutra coisa, que nome adequado se deveria dar a esta cadela, não lhe chamará
Diana ou Lembrada, e que adiantará um nome ao crime ou aos motivos dele, se vai
o nefando bicho morrer de bolo envenenado ou tiro de caçadeira por mão do seu
dono, teima Ricardo Reis e enfim encontra o certo apelativo, um que vem de
Ugolino della Gherardesca, canibalíssimo conde macho que manjou filhos e netos,
e tem atestados disso, e abonações, na História dos Guelfos e Gibelinos,
capítulo respectivo, e também na Divina Comédia, canto trigésimo terceiro do
Inferno, chame-se pois Ugolina à mãe que come os seus próprios filhos,
tão desnaturada que não se lhe movem as entranhas à piedade quando com as suas
mesmas queixadas rasga a morna e macia pele dos indefesos, os trucida,
fazendo-lhes estalar os ossos tenros, e os pobres cãezinhos, gementes, estão
morrendo sem verem quem os devora, a mãe que os pariu, Ugolina não me mates
que sou teu filho. A folha que tais horrores explica tranquilamente cai sobre
os joelhos de Ricardo Reis, adormecido. Uma rajada súbita fez estremecer
as vidraças, a chuva desaba como um dilúvio. Pelas ruas ermas de Lisboa anda a
cadela Ugolina a babar-se de sangue, rosnando às portas, uivando em praças e
jardins, mordendo furiosa o próprio ventre onde já está a gerar-se a próxima
ninhada». In José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis, Editorial Caminho,
Lisboa, 1995, ISBN 972-21-0286-9
Cortesia de Caminho/JDACT