«A coragem que vence o medo
tem mais elementos de grandeza que aquela que o não tem. Uma começa
interiormente; outra é puramente exterior. A última faz frente ao perigo; a
primeira faz frente, antes de tudo, ao próprio temor dentro da sua alma». In Fernando Pessoa
«Quando
Joana Carda riscou o chão com a vara denegrilho, todos os cães de Cerbère
começaram a ladrar, lançando em pânico e terror os habitantes, pois desde os tempos
mais antigos se acreditava que, ladrando ali animais caninos que sempre tinham
sido mudos, estaria o mundo universal próximo de extinguir-se. Como se teria
formado a arreigada superstição, ou convicção firme, que é, em muitos casos, a
expressão alternativa paralela, ninguém hoje o recorda, embora, por obra e
fortuna daquele conhecido jogo de ouvir o conto e repeti-lo com vírgula nova,
usassem distrair as avós francesas a seus netinhos com a fábula de que, naquele
mesmo lugar, comuna de Cerbère, departamento dos Pirenéus Orientais, ladrara,
nas gregas e mitológicas eras, um cão de três cabeças que ao dito nome de Cerbère
respondia, se o chamava o barqueiro Caronte, seu tratador. Outra coisa que
igualmente não se sabe é por que mutações orgânicas teria passado o famoso e
altissonante canídeo até chegar à mudez histórica e comprovada dos seus
descendentes de uma cabeça só, degenerados. Porém, e este ponto de doutrina só
raros o desconhecem, sobretudo se pertencem à geração veterana, o cão Cérbero,
que assim em nossa portuguesa língua se escreve e deve dizer, guardava terrivelmente
a entrada do inferno, para que dele não ousassem sair as almas, e então, quiçá
por misericórdia final de deuses já moribundos, calaram-se os cães futuros para
a toda restante eternidade, a ver se com o silêncio se apagava da memória a
ínfera região. Mas, não podendo o sempre durar sempre, como explicitamente nos
tem ensinado a idade moderna, bastou que nestes dias, a centenas de quilómetros
de Cerbère, em um lugar de Portugal de cujo nome nos lembraremos mais tarde,
bastou que a mulher chamada Joana Carda riscasse o chão com a vara de negrilho,
para que todos os cães de além saíssem à rua vociferantes, eles que, repete-se,
nunca tinham ladrado. Se a Joana Carda alguém vier a perguntar que ideia fora
aquela sua de riscar o chão com um pau, gesto antes de adolescente lunática do que
de mulher cabal, se não pensara nas consequências de um acto que parecia não
ter sentido, e esses, recordai-vos, são os que maior perigo comportam, talvez
ela responda, Não sei o que me aconteceu, o pau estava no chão, agarrei-o e fiz
o risco, Nem lhe passou pela ideia que poderia ser uma varinha de condão, Para
varinha de condão pareceu-me grande, e as varinhas de condão sempre eu ouvi
dizer que são feitas de ouro e cristal, com um banho de luz e uma estrela na
ponta, Sabia que a vara era de negrilho, Eu de árvores conheço pouco,
disseram-me depois que negrilho é o mesmo que ulmeiro, sendo ulmeiro o mesmo
que olmo, nenhum deles com poderes sobrenaturais, mesmo variando os nomes, mas,
para o caso, estou que um pau de fósforo teria causado o mesmo efeito, Por que
diz isso, O que tem de ser, tem de ser, e tem muita força, não se pode resistir-lhe,
mil vezes o ouvi à gente mais velha, Acredita na fatalidade, Acredito no que
tem de ser.
Em Paris riram-se muito das súplicas do maire, que parecia
estar a telefonar de um canil à hora de ir servir-se o almoço dos cães, e só a
instantes rogos de um deputado da maioria, na comuna nascido e criado, portanto
conhecedor das lendas e narrativas locais, é que acabaram por ser despachados
para o sul dois veterinários qualificados do Deuxième Bureau, com a especial
missão de estudarem o fenómeno insólito e apresentarem relatório e propostas de
acção. Entretanto, desesperados, no limiar da surdez, os habitantes tinham
espalhado pelas ruas e praças da aprazível estância balnear, agora estação
infernal, dúzias de bolos de carne envenenados, método de simplicidade suprema,
cuja eficácia tem sido confirmada pela experiência em todos os tempos e
latitudes. Por junto, não morreu mais que um cão, mas a lição foi logo
aprendida pelos sobreviventes, que, em um instante, latindo ladrando e uivando,
se sumiram nos campos arredor, onde, sem motivo que se percebesse, em poucos
minutos se calaram. Quando os veterinários enfim chegaram foi-lhes apresentado
o triste Médor, frio, inchado, tão diferente do feliz animal que acompanhava a
dona às compras, e que, por ser já velho, gostava de dormir ao sol, sem
cuidados. Porém, como a justiça ainda não abandonou por completo este mundo,
decidiu Deus, poeticamente, que Médor morresse do bolo preparado pela dona
bem-amada, a qual, bom é que se saiba, tinha no pensamento uma certa cadela da
vizinhança que não lhe saía do jardim. O mais velho dos veterinários, diante do
fúnebre despojo, disse, Vamos autopsiar, e realmente não valia a pena,
porquanto qualquer habitante de Cerbère poderia, se o quisesse, testemunhar a causa mortis, mas o fito oculto da
Faculdade, como na gíria do serviço secreto lhe chamavam, era proceder, disfarçadamente,
ao exame das cordas vocais de um bicho que, entre a mudez por morte agora
definitiva e o silêncio que parecera ser para toda a vida, tivera afinal umas horas
de fala e pudera ser igual ao comum dos cães. Foram esforços baldados, Médor
nem cordas tinha. Ficaram os cirurgiões assombrados, mas o maire deu a sua
opinião, administrativa e sensata, Não admira, tantos séculos os cães de
Cerbère estiveram sem ladrar, que se lhes atrofiou o órgão, Então como é que de
repente, Isso não sei, não sou veterinário, mas as nossas preocupações acabaram-se,
os chiens desapareceram, lá onde
estão nem se ouvem. Médor, escortaçado e mal cosido, foi entregue à chorosa
dona, como um remorso vivo, que é o que são os remorsos mesmo depois de mortos.
A caminho do aeroporto, onde iam tomar o avião para Paris, os veterinários
combinaram que passariam por alto, no relatório, o intrigante sucesso das
cordas vocais desaparecidas. E parece que definitivamente, porque nessa mesma
noite andou a rondar Cerbère um enorme cão de três cabeças, alto como uma
árvore, mas calado». In José
Saramago, A Jangada de Pedra, Editorial Caminho, 1986, 16ª Edição, Reunidos,
Lisboa, 2010, ISBN 978-972-21-0289-6.
Cortesia de
Caminho/JDACT