Guisado de cumplicidades
«(…) A presente obra não atinge esta benemérita
categoria de prelados, silenciosos e modestos. Honra a vós, irmãos, porque o
vento da vanglória não conseguiu arranhar a humildade da vossa vida interior,
e, pela tardinha, podereis dizer ao Dono da vinha por vós cultivada e tornada
fértil com as vossas melhores energias e com os vossos anos mais preciosos: somos servos inúteis e o esquecimento dos
outros adequa-se-nos perfeitamente. Como Cristo, vosso modelo, vós, pedras
angulares, fostes rejeitados pelos construtores de uma Igreja orientada para os
seus uso e consumo. A época em que vivestes faz parte da vossa própria vida!
Graças a este vosso testemunho silencioso, não compartilhamos a opinião de quem
afirma que, no momento presente, o Vaticano não está em condições de
identificar coralistas com as asas atrás das costas. A lista dos vossos nomes testemunha
exactamente o contrário. A vossa travessia entre Cila e Carídes foi difícil:
firmes no centro do barco para não se afastar do caminho certo, como adverte a
Águia de Hipona: Ex uma parte saxa tu navifraga,
ex altera parte fluctus tu navivora; tu autem rectam tene lineam; sic nec in
Scillam nec in Caribdin incurris (Se vais para um lado o barco parte-se
contra as rochas, se vais para outro devoram-no as ondas; fixa-te no centro
para não incorreres nas ciladas de Cila e Carídes).
Há, ainda assim, quem pense edificar, à sombra da
cupula de Miguel Ângelo, um pequeno templo dedicado à Mãe dos Excluídos da
cúria. Aos seus pés, os marginalizados da Igreja, com o coração como Ana, mãe
de Samuel que Heli julga embriagada, sabe-se lá quantas vezes lhe repetiriam a
ela, que conhece bem a gíria local, a súplica do paralítico na piscina probática
Hominem non habeo que, em linguagem
vaticana, significaria não ter tido a sorte de encontrar o dignitário adequado para
a oportuna cunha promocional.
A verificação de certos fenómenos aqui referidos
diz mais respeito àquela minoria que nem sequer mereceria tanta atenção se não
fosse o facto de ser a mais activa e determinante no governo da Igreja. É um
fenómeno presente em todas as outras sociedades do mundo e, como tal, a Igreja
não é excepção; nada do que é humano lhe é estranho, incluindo as imperfeições
e as misérias dos seus dirigentes mais em evidência. Há crise na Igreja porque
ela está no mundo e o mundo atravessa-a com as mesmas profundas inquietações de
que sofre a sociedade, com os mesmos fermentos que fermentam na era
pós-conciliar. A sua problemática assemelha-se à problemática da Idade Média,
quando as personalidades mais sérias misturavam a extravagância do fausto e o
pietismo mais sectário e mais dessacralizante; assim, conviviam e convivem tranquilamente,
na mesma pessoa, os pecados sociais mais requintados, com a piedade mais
delicada, a ostentação mais orgulhosa com a humildade mais ou menos sincera, a
ambição do poder com a generosidade mais ostensiva a favor das igrejas e das
obras de arte. A história eclesiástica está cheia deste perigoso guisado de
cumplicidades. Não são os valores que estão em crise; é a cultura dos valores
que está em crise, da mesma forma que o Sol não entra em crise quando as nuvens
o escondem. Antes de tudo, crise quanto ao significado dos valores morais e crise
de autoridade palpável no facto incontestável de que todos os altos cargos da
cúria se apresentam ligados à fascinação da oferta do apoio mais eficaz,
interno e externo, à Igreja. Todavia o mundo precisa da Igreja para resolver as
suas crises recorrentes. Sem os caminhos interiores do espírito não se pode
seguir direito e com dignidade pelos caminhos exteriores do mundo, dizia Ernest
Bloch». In I Millenari, Via col vento in Vaticano, Kaos Edizioni, 1999, O
Vaticano contra Cristo, tradução de José A. Neto, Religiões, Casa das Letras,
2005, ISBN 972-46-1170-1.
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