«Foi
recentemente trazido de novo à luz, liberto das águas e das areias do Mondego,
o que resta do complexo de edifícios que constituía o Mosteiro de Santa
Clara-a-Velha e anexos. E o que resta é simplesmente a Igreja e o Claustro,
pois os outros edifícios, também mandados construir pela Rainha Santa Isabel,
já tinham desaparecido antes da acentuada submersão do mosteiro, segundo
testemunho de autores contemporâneos desses desaparecimentos. Quando falamos do
Mosteiro de Santa Clara-a-Velha, a associação à figura da Rainha Santa Isabel é
imediata, pelo papel fundamental que ela teve na sua construção e
florescimento. Por isso, as biografias desta rainha apresentam, todas elas,
como não podia deixar de ser, informação sobre a sua dedicação e o seu empenho
na construção e manutenção desta complexa edificação, que incluía igreja,
claustros, um paço régio onde costumava alojar-se quando residia em Coimbra,
para estar próxima das clarissas, e alojamentos para homens e mulheres
carenciados, de vida honesta, com a respectiva igreja e cemitério. O primeiro
documento biográfico da rainha é um texto de autor desconhecido, que andou
manuscrito por muito tempo na biblioteca do Mosteiro, onde foi consultado por
todos os biógrafos seguintes e cronistas que se debruçaram sobre os reinados de
Dinis I e Afonso IV, e que foi escrito muito pouco tempo depois da sua morte,
que ocorreu em 1336; foi editado
pela primeira vez por fr. Francisco Brandão, na Monarchia Lusitana, parte VI, com o título Relaçam da vida da gloriosa Santa Isabel,
Rainha de Portugal, e depois reeditado, com nova leitura e mais completa,
por José Joaquim Nunes, no Boletim da Classe de Letras da Academia das
Ciências de Lisboa, em 1921, com
o título Livro que fala da boa vida
que fez a Raynha de Portugal, Dona Isabel, e dos seus bõos feitos e milagres em
sa vida e depoys da morte. É este último texto que seguiremos e
citaremos, referindo-o pela designação tradicional de Lenda da Rainha Santa.
Neste
texto se refere a origem do monumento e o papel da rainha para a resolução do
impasse a que se tinha chegado depois de longa contenda judicial e o empenho e entusiasmo
que colocou na edificação do Mosteiro onde, depois de viúva, viria a passar
grande parte do seu tempo e em cuja igreja escolheu ser sepultada. O
mosteiro de Santa Clara teve um início atribulado; fora fundado por D.
Mór Dias, uma abastada dama da nobreza que, decidindo afastar-se do mundo,
recolhendo-se num mosteiro, em 1250,
sem, no entanto, professar, para poder continuar a possuir e a administrar os
seus bens, começara por escolher para a sua reclusão, o mosteiro feminino da
Ordem de Santa Cruz, em Coimbra, onde viveu algum tempo, aparentemente em
situação de poder dispor dos seus bens. Poucos anos depois, por volta de 1278, mandava ela construir, junto do
Mondego, umas casas e, em 1283,
obtinha autorização para fundar um mosteiro onde pudesse recolher-se, da ordem
de Santa Clara, dedicando-o a Santa Isabel de Hungria. Os Cónegos Regrantes de Santa
Cruz, no entanto, não aceitaram pacificamente esta transferência de D. Mór
Dias e da sua fortuna para outra instituição e iniciaram contra ela uma
demanda, argumentando que tinha professado na sua ordem e que, como tal, quer a
pessoa quer os seus bens lhes pertenciam. O conflito prolongou-se por vários
anos, contando mesmo com a intervenção da Santa Sé, quer em vida da fundadora,
quer depois da sua morte, que ocorreu em 1303.
Finalmente, por decisão do tribunal, favorável aos frades de Santa Cruz, as
clarissas foram expulsas e o mosteiro ficou desabitado. In Lenda, 1921.
Foi
a intervenção da rainha D. Isabel de Aragão que veio dar novo alento à
iniciativa de D. Mór Dias: contribuiu para a composição das partes em
litígio; solicitou autorização para fundar um mosteiro de invocação a Santa
Clara, naquele mesmo lugar onde o quisera D. Mór Dias, mas agindo como
se começasse de novo, comprando os terrenos em redor, e planeando uma grande
construção, cujas obras decorriam já em 1316.
O mosteiro conheceu, após a intervenção da rainha, o seu grande desenvolvimento. In Lenda, 1921. Para seguir de perto e orientar a
construção, quando estivesse em Coimbra, a rainha mandou construir, nas
proximidades, uma casa para si e para os seus, que posteriormente acompanhou de
outros edifícios, destinados a um hospício que albergaria separadamente 15
homens e 15 mulheres pobres, com a respectiva capela e cemitério consagrados;
estes edifícios ficariam, à sua morte, propriedade do mosteiro. In Lenda
1921. A Rainha decidiu também escolher para seu eterno descanso a
igreja do Mosteiro e tratou de mandar fazer o seu túmulo. Foi colocado no meio da
Igreja, mas desde logo, as águas do Mondego se mostraram ameaçadoras, dando
sinal já do destino que havia de sofrer esta vasta edificação, que foi conquistada,
ao longo dos séculos, pelas águas, das quais só recentemente se voltou a
libertar». In Helena Costa Toipa, Três Momentos na Existência do Mosteiro de Santa
Clara-a-Velha, Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, Revista
Humanitas nº LXI, Universidade de Coimbra, 2009, ISSN
0871-1569.
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