quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Amizade. Amor e Eros na Ilíada. Maria Helena Pereira. «... Mas agora quero alcançar uma nobre glória, e que as Troianas e Dardânidas de bela pintura, enxugando com ambas as mãos as lágrimas nas tenras faces, solucem profundamente, e se apercebam de quanto tempo me abstive do combate…»

Cortesia de wikipedia

«(…) É precisamente isso o que sucede no Canto I do poema. Agamémnon rejeita, desabridamente e com ameaças, o pedido de resgate de Criseida, que o pai desta lhe faz, revestido das insígnias de sacerdote de Apolo, pelo que o deus o castiga, e a todo o exército, lançando a peste no acampamento. Revelada a causa da epidemia pelo adivinho dos Aqueus, vê-se na obrigação de restituir a cativa, mas para isso reclama a sua substituição por outra. No calor da discussão com Aquiles, é a deste último, Briseida, que ele acaba por exigir. Ora as cativas eram presente de honra, e este lexema atravessa, como um signo ameaçador, a longa discussão na primeira parte da assembleia dos chefes, em que Aquiles é desfeiteado na presença de todos (oito ocorrências da palavra em 87 versos). Certos comentadores antigos, que tentaram emendar o verso 6 da proposição do poema: desde o momento em que se separaram, discordando um do outro, lendo uma referência causal, onde estava um verbo no dual acompanhado de um particípio suplementar, cujo sujeito é o Atrida, senhor dos homens e o divino Aquiles, além de inventarem uma palavra, mostraram não compreender o alcance da ofensa, reduzindo-a a uma simples questão de rivalidade por uma mulher. Numa das suas acutilantes réplicas a Agamémnon, o rei dos Mirmidões acentua que não está em Tróia para vingar afrontas pessoais de depredação dos seus bens (que eram afinal as causas correntes de guerras), mas para prestar serviço aos Atridas: é que eu não vim lutar para aqui por causa dos Troianos belicosos, pois eles nada me fizeram; jamais me tiraram bois ou cavalos, nem destruíram as colheitas na Ftia de solo fértil, criadora de heróis, pois muitos são os acidentes que ficam de permeio, as montanhas umbrosas e o marulhante mar. Mas seguimos-te, grande descarado, para teu prazer, para vos granjear honra, a Menelau e a ti, ó cara de cão, junto dos Troianos; Disso não curas nem pensas tu! Mais tarde, ao replicar ao discurso com que Ulisses, em nome de Agamémnon, tenta convencê-lo a regressar ao combate, Aquiles insiste em que não ajudará o rei de Micenas, nem com o conselho, nem com a acção  e exclama: é que ele já me decepcionou e ofendeu; não vai iludir-me de novo com palavras! Que se contente com o que fez!
O seu discurso rebate depois, uma por uma, as vantagens das ofertas de Agamémnon: não aceita nem riquezas, nem cidades, nem uma das filhas em casamento. Regressará à Ftia, e aí encontrará uma nobre esposa, porque, continua, nada existe que possa pagar a vida. Sabedor, através da mãe, a deusa Tétis, do duplo destino que pode aguardá-lo, morrer cedo, com glória, ou gozar de uma velhice apagada, só tem que aconselhar a todos o regresso ao seu país. Este não é o pensar verdadeiro do herói por excelência, momentaneamente disfarçado sob a capa do homem comum. É o do herói ofendido que desdenha esta tentativa de aproximação. Mas a profecia de Tétis vai regressar na altura própria: quando, após a morte de Pátroclo, tiver começado aquilo a que Dieter Lohmann, num livro que fez época, chamou a segunda fase, aquela que o leva a ir para o combate, sem atender a nada, para castigar Heitor. Ao ouvir a decisão do filho, Tétis esclarece melhor: logo após a morte de Heitor, a sua estará preparada. Reconhece-se agora o fogoso guerreiro na resposta impetuosa e desesperada: que eu morra de imediato, já que não me era dado defender da morte o companheiro!... Mais adiante, o tema da morte e da glória entrelaçam-se de novo nesta tirada cheia de exaltação: ... Mas agora quero alcançar uma nobre glória, e que as Troianas e Dardânidas de bela pintura, enxugando com ambas as mãos as lágrimas nas tenras faces, solucem profundamente, e se apercebam de quanto tempo me abstive do combate. Por muito que me ames, não me afastes da luta: não me convencerás.
Mas, ao lado destes, o tema da amizade vai ter um valor fundamental, pois é essa, afinal, a razão última do sacrifício da vida de Aquiles. Quando Pátroclo cai ferido por Heitor e os outros chefes guerreiros tentam impedir a todo o custo a consumação suprema do príncipe troiano, ficar de posse do cadáver do inimigo, Ajax lembra a Menelau que é preciso prevenir Aquiles de que perecera o companheiro que, de longe, ele mais estimava. O espectáculo da dor de Aquiles, do seu imenso desespero, com Antíloco a segurar-lhe as mãos, para o impedir de se matar, o lamento das cativas e o do coro das Nereidas, que vêm das profundezas marinhas acompanhar Tétis, são, não obstante as severas críticas que, séculos mais tarde, Platão havia de tecer-lhe na República, em nome de um auto-domínio que o logos socrático o levara a prezar como marca de superioridade, um dos passos mais impressionantes do poema. No canto seguinte, o herói afirmará que nem a morte de Peleu, seu pai, nem a do filho lhe custariam mais. Era precisamente com Pátroclo que ele contava para levar o jovem Neoptólemo como herdeiro para os domínios da Ftia, quando ele mesmo, Aquiles, perecesse em terra alheia, a lutar contra os Troianos, por causa da horrível Helena. E, contudo, Aquiles amava o seu pai». In Maria Helena Rocha Pereira, Amizade, Amor e Eros na Ilíada, Revista Humanitas, volume XLV, 1993, Universidade de Coimbra.

Cortesia da UCoimbra/JDACT