«(…) É precisamente isso o que sucede no
Canto I do poema. Agamémnon rejeita, desabridamente e com ameaças, o pedido de
resgate de Criseida, que o pai desta lhe faz, revestido das insígnias de
sacerdote de Apolo, pelo que o deus o castiga, e a todo o exército, lançando a peste
no acampamento. Revelada a causa da epidemia pelo adivinho dos Aqueus, vê-se na
obrigação de restituir a cativa, mas para isso reclama a sua substituição por
outra. No calor da discussão com Aquiles, é a deste último, Briseida, que ele
acaba por exigir. Ora as cativas eram presente de honra, e este lexema
atravessa, como um signo ameaçador, a longa discussão na primeira parte da assembleia
dos chefes, em que Aquiles é desfeiteado na presença de todos (oito ocorrências
da palavra em 87 versos). Certos comentadores antigos, que tentaram emendar o
verso 6 da proposição do poema: desde
o momento em que se separaram, discordando um do outro, lendo uma
referência causal, onde estava um verbo no dual acompanhado de um
particípio suplementar, cujo sujeito é o
Atrida, senhor dos homens e o divino Aquiles, além de inventarem uma
palavra, mostraram não compreender o alcance da ofensa, reduzindo-a a uma
simples questão de rivalidade por uma mulher. Numa das suas acutilantes
réplicas a Agamémnon, o rei dos Mirmidões acentua que não está em Tróia para
vingar afrontas pessoais de depredação dos seus bens (que eram afinal as causas
correntes de guerras), mas para prestar serviço aos Atridas: é que eu não vim lutar para aqui por
causa dos Troianos belicosos, pois eles nada me fizeram; jamais me tiraram bois
ou cavalos, nem destruíram as colheitas na Ftia de solo fértil, criadora de
heróis, pois muitos são os acidentes que ficam de permeio, as montanhas
umbrosas e o marulhante mar. Mas seguimos-te, grande descarado, para teu
prazer, para vos granjear honra, a Menelau e a ti, ó cara de cão, junto dos
Troianos; Disso não curas nem pensas tu! Mais tarde, ao replicar ao
discurso com que Ulisses, em nome de Agamémnon, tenta convencê-lo a regressar
ao combate, Aquiles insiste em que não ajudará o rei de Micenas, nem com o
conselho, nem com a acção e exclama: é que ele já me decepcionou e ofendeu;
não vai iludir-me de novo com palavras! Que se contente com o que fez!
O seu discurso rebate depois, uma por uma,
as vantagens das ofertas de Agamémnon: não
aceita nem riquezas, nem cidades, nem uma das filhas em casamento. Regressará à
Ftia, e aí encontrará uma nobre esposa, porque, continua, nada existe que possa pagar a vida.
Sabedor, através da mãe, a deusa Tétis, do duplo destino que pode aguardá-lo, morrer
cedo, com glória, ou gozar de uma velhice apagada, só tem que aconselhar a
todos o regresso ao seu país. Este não é o pensar verdadeiro do herói por
excelência, momentaneamente disfarçado sob a capa do homem comum. É o do herói
ofendido que desdenha esta tentativa de aproximação. Mas a profecia de Tétis
vai regressar na altura própria: quando, após a morte de Pátroclo, tiver
começado aquilo a que Dieter Lohmann, num livro que fez época, chamou a segunda
fase, aquela que o leva a ir para o combate, sem atender a nada, para
castigar Heitor. Ao ouvir a decisão do filho, Tétis esclarece melhor: logo após
a morte de Heitor, a sua estará preparada. Reconhece-se agora o fogoso
guerreiro na resposta impetuosa e desesperada: que eu morra de imediato, já que não me era dado defender da morte o
companheiro!... Mais adiante, o tema da morte e da glória entrelaçam-se
de novo nesta tirada cheia de exaltação: ... Mas agora quero alcançar uma nobre glória, e que as Troianas e
Dardânidas de bela pintura, enxugando com ambas as mãos as lágrimas nas tenras
faces, solucem profundamente, e se apercebam de quanto tempo me abstive do
combate. Por muito que me ames, não me afastes da luta: não me convencerás.
Mas, ao lado destes, o tema da amizade vai
ter um valor fundamental, pois é essa, afinal, a razão última do sacrifício da
vida de Aquiles. Quando Pátroclo cai ferido por Heitor e os outros chefes guerreiros
tentam impedir a todo o custo a consumação suprema do príncipe troiano, ficar
de posse do cadáver do inimigo, Ajax lembra a Menelau que é preciso prevenir
Aquiles de que perecera o companheiro
que, de longe, ele mais estimava. O espectáculo da dor de Aquiles, do
seu imenso desespero, com Antíloco a segurar-lhe as mãos, para o impedir de se
matar, o lamento das cativas e o do coro das Nereidas, que vêm das profundezas
marinhas acompanhar Tétis, são, não obstante as severas críticas que, séculos mais
tarde, Platão havia de tecer-lhe na República,
em nome de um auto-domínio que o logos
socrático o levara a prezar como marca de superioridade, um dos passos mais
impressionantes do poema. No canto seguinte, o herói afirmará que nem a morte
de Peleu, seu pai, nem a do filho lhe custariam mais. Era precisamente com
Pátroclo que ele contava para levar o jovem Neoptólemo como herdeiro para os
domínios da Ftia, quando ele mesmo, Aquiles, perecesse em terra alheia, a lutar contra os Troianos, por causa da horrível
Helena. E, contudo, Aquiles amava o seu pai». In Maria Helena Rocha Pereira,
Amizade, Amor e Eros na Ilíada, Revista Humanitas, volume XLV, 1993,
Universidade de Coimbra.
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