«Do muito que sossobrou da
produção cómica ateniense na sua primeira fase, não mais nos resta do que uma
pálida sombra, que recuperamos, cheia de obscuridades e interrogações, de
testemunhos antigos de épocas várias. São primeiro os contemporâneos, aqueles
que apreciaram de perto o fenómeno, sobretudo por nele serem também
intervenientes, e que, motivados pela consciência profissional que leva a uma
reflexão sobre a arte, ou pelos amargores de uma concorrência que o sistema
concurso fomentava, teceram comentários sobre o género e sobre os rivais
activos na disputa pelos favores da Musa. Neste número avulta o nome de
Aristófanes, para além de comediógrafo de grande sucesso, um teórico feito de
uma longa experiência na cena de Dioniso, atento ao fluir imparável da comédia
e seu permanente crítico e comentador; guiados pelo seu testemunho, somos
estimulados a um percurso que se inicia nos tempos longínquos de uma
popularidade feita de improviso e de espontaneidade burlesca, até aos dias mais
promissores em que se abria à comédia um caminho de progresso e
aperfeiçoamento, através da presença, oficialmente reconhecida, nos festivais
dramáticos da polis. Um
outro tipo de informação, de natureza diversa mas de significado também
relevante, é a que provém dos textos burocráticos, que acompanharam a gestão da
festa de Dioniso em Atenas, registos de nomes de poetas, títulos de peças,
vencedores nos concursos, datas das produções; por eles somos orientados para
uma análise mais quantitativa do fenómeno, que documenta a expansão alcançada,
embora alguns aspectos de sucesso ou preferência, por temas ou por poetas, se
tornem também patentes. Mais tarde, quando a comédia se situava já entre as
glórias passadas da cidade de Palas, foi outra a motivação para toda uma série
de comentários e citações dos velhos comediógrafos. Em primeiro lugar, um
sentido de clarificação motivou a redacção de escólios, notas informativas acrescentadas às cópias dos textos,
a procurarem esclarecer um leitor menos sensibilizado, a séculos de distância,
para pormenores ou referências então já incompreensíveis. Dentro do mesmo
espírito, elaboraram-se sumários breves, a conduzirem a leitura para os tópicos
essenciais de cada peça, que vieram a servir de magro substituto do próprio
texto, quando entretanto desaparecido. Não menos interessante é o papel dos
diversos biógrafos, críticos literários e autores de vocabulários e léxicos, que,
nos textos antigos ainda ao seu dispor, buscaram matéria para estudos e registos.
Dessa actividade resultaram tratados expressamente dedicados à produção
literária do passado, listagens vocabulares voltadas para a tradição linguística
do grego, ou simples abonações, nos mais diversos contextos, através do
testemunho de citações dos antigos. Complementares umas das outras, inestimáveis
como informação única de um passado que demandamos, estas vozes não satisfazem
a nossa curiosidade e muito mal preenchem o espaço deixado vazio pela acção
devastadora do tempo. A mão do acaso, sobreposta a todos os propósitos e
objectivos, seleccionou para nós um material, de relevância e dimensão
variadas, que, mais do que dar respostas, suscita novas interrogações e dúvidas
desesperadamente insolúveis. Apesar de todas as dificuldades, um percurso por
esse campo de ruínas continua uma tentação, sobretudo se, mesmo que escassos,
os fragmentos que nos restam, articulados com as informações disponíveis, podem
devolver a imagem, embora ténue, de uma celebridade perdida. É esse o convite
que um nome sonante, como o de Cratino, propõe ainda ao estudioso
moderno. De uma geração nascida na primeira metade do séculos V a. C., Cratino
suscitou em torno de si um coro de vozes que associam a sua actividade à definição
de um progresso decisivo na história
da comédia. Ε foi como cultor da agressividade no ataque nominal, à
maneira dos poetas iâmbicos e em particular de Arquíloco, que Cratino
imprimiu, na simplicidade do komos, um vigor e objectivo
inteiramente novos.
Tal proeza encontra já o merecido
reconhecimento na parábase de Cavaleiros de Aristófanes, onde o
autor, a pretexto de exemplificar a caducidade do êxito literário, cataloga e
caracteriza os precursores, a quem coube determinar o ritmo de evolução no
passado do género. A invectiva não era um dado novo na produção cómica, antes
fazia parte de uma tradição quase lendária, onde o gracejo nominal aparecia
como uma manifestação episódica e destacada de um contexto preciso. O seu
objectivo não teria então qualquer outro alcance para além de divertir uma
assistência ainda pouco exigente. Assim, a intervenção de Cratino neste processo teria
vindo redimensionar e justificar, em termos inovadores, a velha tradição. De
gracejos esporádicos, os ataques ampliaram-se à totalidade da intriga, as
vítimas ganharam a consistência de verdadeiras personagens dramáticas, dentro
de um contexto que permitiu à comédia ocupar-se, numa perspectiva de
intervenção didáctica, de questões políticas e sociais. São significativos
os termos em que Aristófanes descreve a atitude literária de Cratino,
identificando-o com caudal poderoso que, numa marcha sem barreiras, arrastasse,
arrancadas pela raiz, árvores de grande porte, plátanos e carvalhos». In Maria
de Fátima Silva, Cratino.´, A Sombra de um Grande Poeta, Revista Humanitas, volume
XLIX, 1997, Universidade de Coimbra.
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