Goa
«(…) Muitas vezes depara a gente com esses filhos do sol, durante os
grandes calores, encostados a um objecto qualquer, os braços pendidos, a cabeça
caída e os olhos cerrados, esfregando o corpo contra o que se apoiam. Assim
dormitam, cabeceiam e suam nessa embriaguez voluptuosa, própria do indiano.
Nada há que o arrede dali. O calor na Índia é esmagador e deprime sensivelmente
o sistema nervoso; mas tem o quer que seja de grandioso e solene. Não só
escalda e abate, mas assombra. Numa tarde de Maio, principalmente, o
espectáculo da Natureza toca as raias do sublime horrível: são tardes ameaçadoras,
rubras de fogo como a antecâmara do Inferno. O sol desce para o ocaso em
verdadeiro triunfo. As águas do mar atingem uma fosforescência única naqueles
climas, semelhando uma massa de cristais em que incidem os raios do sol poente.
O horizonte é a boca de um vulcão. Largas faixas de luz de um vivo bronzeado,
entremeadas de listrões brancos e azul-escuros tremem no horizonte como as
franjas de um docel. Nuvens de fantásticas formas, debruadas de luz, túmidas
como rolos de fumo que transformam a lisura do véu que nos cobre em fantástico
turbilhão de blocos que se movem. Umas correm, outras montam aumentando de
corpo e mudando de forma; estes chocam-se, aquelas irrompem do vácuo;
desdobram-se umas, desaparecem outras; estas geram as que vão rolando pela fímbria
do horizonte, aquelas desfazem-se pelo vento em canudos de fumo; rasga-se o
bojo de umas abrindo na abóbada celeste frestas de fogo; outras, quais negros
penedos desencadeados do alto, precipitam-se sobre o foco de luz. Ao súbito
escurecer por um tropel de sombras, a luz por tal forma reprimida estende-se no
alto das nuvens como as lavas de um incêndio por cima de um monte. Nesta contínua
e rápida metamorfose de formas, luz e sombras, o espectador parece assistir à
génese de novos mundos. Um cataclismo ígneo confunde os céus e o mar numa orgia
de luz, variando em intensidade à proporção que o sol caminha para o ocaso. De
súbito, as tintas chocam-se, esbatem-se, e à variação da luz e da perspectiva,
segue-se um véu denso da cor de ouro fosco: é sol-posto.
Do lado do nascente, o horizonte carrega-se a pouco
e pouco. Ameaça a chuva. A luz crepuscular incidindo sobre este fundo negro
espalha uma claridade etérea por sobre as cumeadas das serras das Novas
Conquistas que se nos afiguram mais próximas. Enquanto deste lado o fundo
cada vez mais se alarga e escurece, pelas bandas do mar o amarelo carregado
acentue-se cada vez mais até descambar num rubro firme e baço. Como o
crepúsculo dura pouco, a intensidade da luz e do calor é rápida, mas vulcânica.
As nuvens, que espreitam por detrás dos montes, galgam rapidamente o horizonte
visual. Zonas de luz e sombras aparecem e desaparecem, segundo a direcção que
as nuvens seguem, para, dentro em pouco, se estender uma escura cortina, que põe
a coberto os lados do nascente. Este véu denso e negro como o fumo do carvão
bate o reflexo vespertino para o seu foco. O espectáculo é arrebatador. Da
Aguada a Ribandar o espaço aparece envolto num clarão que ninguém sabe donde
parte. Dir-nos-íamos arrebatados ao Thabor para assistir à transfiguração de um
deus. Como na Europa, em dia de névoa, a terra e o céu se confundem, na Índia,
numa tarde de Maio, a multidão que passa parece vespertina. A este quadro de
tintas bíblicas nada há que se compare na arre ou na imaginação. Sentimo-nos
transplantados ao Sinai, onde Moisés se cria arrancado da terra por uma tromba
de luz. Numa exuberância tão caprichosa de cores, de audazes crispações, chega
a perder-se a consciência da realidade. A imaginação banha-se em um mar de
volúpia, a sensibilidade quase se insensibiliza num delírio de êxtases e de
doce esquecimento. Só num clima desses poderiam nascer o impassível Buda e o
meigo Jesus». In Frederico Diniz D’Ayalla, Goa Antiga e Moderna, Ésquilo edições e
multimédia, Revisão de Adalberto Alves, 2011, ISBN 978-989-719-001-8.
Para Ofélia e Álvaro José, que
estejam em paz!
Cortesia de Ésquilo/JDACT