sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Goa Antiga e Moderna. Frederico Diniz D’Ayalla. «… à proporção que o sol caminha para o ocaso. De súbito, as tintas chocam-se, esbatem-se, e à variação da luz e da perspectiva, segue-se um véu denso da cor de ouro fosco: “é sol-posto”»

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Goa
«(…) Muitas vezes depara a gente com esses filhos do sol, durante os grandes calores, encostados a um objecto qualquer, os braços pendidos, a cabeça caída e os olhos cerrados, esfregando o corpo contra o que se apoiam. Assim dormitam, cabeceiam e suam nessa embriaguez voluptuosa, própria do indiano. Nada há que o arrede dali. O calor na Índia é esmagador e deprime sensivelmente o sistema nervoso; mas tem o quer que seja de grandioso e solene. Não só escalda e abate, mas assombra. Numa tarde de Maio, principalmente, o espectáculo da Natureza toca as raias do sublime horrível: são tardes ameaçadoras, rubras de fogo como a antecâmara do Inferno. O sol desce para o ocaso em verdadeiro triunfo. As águas do mar atingem uma fosforescência única naqueles climas, semelhando uma massa de cristais em que incidem os raios do sol poente. O horizonte é a boca de um vulcão. Largas faixas de luz de um vivo bronzeado, entremeadas de listrões brancos e azul-escuros tremem no horizonte como as franjas de um docel. Nuvens de fantásticas formas, debruadas de luz, túmidas como rolos de fumo que transformam a lisura do véu que nos cobre em fantástico turbilhão de blocos que se movem. Umas correm, outras montam aumentando de corpo e mudando de forma; estes chocam-se, aquelas irrompem do vácuo; desdobram-se umas, desaparecem outras; estas geram as que vão rolando pela fímbria do horizonte, aquelas desfazem-se pelo vento em canudos de fumo; rasga-se o bojo de umas abrindo na abóbada celeste frestas de fogo; outras, quais negros penedos desencadeados do alto, precipitam-se sobre o foco de luz. Ao súbito escurecer por um tropel de sombras, a luz por tal forma reprimida estende-se no alto das nuvens como as lavas de um incêndio por cima de um monte. Nesta contínua e rápida metamorfose de formas, luz e sombras, o espectador parece assistir à génese de novos mundos. Um cataclismo ígneo confunde os céus e o mar numa orgia de luz, variando em intensidade à proporção que o sol caminha para o ocaso. De súbito, as tintas chocam-se, esbatem-se, e à variação da luz e da perspectiva, segue-se um véu denso da cor de ouro fosco: é sol-posto.
Do lado do nascente, o horizonte carrega-se a pouco e pouco. Ameaça a chuva. A luz crepuscular incidindo sobre este fundo negro espalha uma claridade etérea por sobre as cumeadas das serras das Novas Conquistas que se nos afiguram mais próximas. Enquanto deste lado o fundo cada vez mais se alarga e escurece, pelas bandas do mar o amarelo carregado acentue-se cada vez mais até descambar num rubro firme e baço. Como o crepúsculo dura pouco, a intensidade da luz e do calor é rápida, mas vulcânica. As nuvens, que espreitam por detrás dos montes, galgam rapidamente o horizonte visual. Zonas de luz e sombras aparecem e desaparecem, segundo a direcção que as nuvens seguem, para, dentro em pouco, se estender uma escura cortina, que põe a coberto os lados do nascente. Este véu denso e negro como o fumo do carvão bate o reflexo vespertino para o seu foco. O espectáculo é arrebatador. Da Aguada a Ribandar o espaço aparece envolto num clarão que ninguém sabe donde parte. Dir-nos-íamos arrebatados ao Thabor para assistir à transfiguração de um deus. Como na Europa, em dia de névoa, a terra e o céu se confundem, na Índia, numa tarde de Maio, a multidão que passa parece vespertina. A este quadro de tintas bíblicas nada há que se compare na arre ou na imaginação. Sentimo-nos transplantados ao Sinai, onde Moisés se cria arrancado da terra por uma tromba de luz. Numa exuberância tão caprichosa de cores, de audazes crispações, chega a perder-se a consciência da realidade. A imaginação banha-se em um mar de volúpia, a sensibilidade quase se insensibiliza num delírio de êxtases e de doce esquecimento. Só num clima desses poderiam nascer o impassível Buda e o meigo Jesus». In Frederico Diniz D’Ayalla, Goa Antiga e Moderna, Ésquilo edições e multimédia, Revisão de Adalberto Alves, 2011, ISBN 978-989-719-001-8.

Para Ofélia e Álvaro José, que estejam em paz!

Cortesia de Ésquilo/JDACT