O
futuro perfeito
«A
neta explora-me os dentes,
penteia-me
como quem carda.
Terra
da sua experiência,
meu
rosto diverte-a, parda
imagem
dada à inocência.
Finjo
que lhe como os dedos,
fura-me
os olhos cansados,
íntima
aos meus próprios medos
deixa-mos
sossegados.
E
tira, tira puxando
coisas
de mim, divertida.
Assim
me vai transformando
em
tempo de sua vida».
Poema de Vitorino Nemésio, in ‘Os Poemas da Minha Vida, Praia da Vitória,
Ilha Terceira, 1901-1978’
A
casa deserta
«Ah
nada pior que a casa deserta,
sozinha,
sozinha.
O
fogão apagado e tudo sem interesse.
O
mundo lá longe, para lá da floresta.
E
o vento soprando
a
chuva caindo
a
casa deserta...
Ah
nada pior que estes dias e dias,
de
cachimbo aceso, com as mãos inertes,
com
todas as estradas inteiramente barradas,
ouvindo
a floresta.
Com
tudo lá longe, na casa deserta,
o
vento soprando
e
a chuva caindo, na noite caindo...
Há
uma cancela que range nos gonzos
um
velho cão de guarda que ladra sem motivo
parece
que é gente que vem a entrar...
E
é só o vento soprando, soprando
e
a chuva caindo...
Mudaram
muita vez as folhas da floresta.
Os
olhos do homem são olhos de doido.
Fogão
apagado, aceso o cachimbo, o mundo lá longe.
E
o vento soprando
a
chuva caindo
a
casa deserta...»
Poema
de Mário Dionísio, in
Poema de Mário Dionísio, in ‘Os Poemas da Minha Vida, Lisboa, 1916-1993’
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