sábado, 31 de janeiro de 2015

No 31. Vitorino Nemésio. Mário Dionísio. «Esta é uma infância viva, que transforma o adulto em comparsa do jogo infantil, recuando a sua experiência e prolongando o seu percurso. Toca-nos a presença dos dois corpos, e descobre-se eco no eco de si em que reinveste»

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O futuro perfeito
«A neta explora-me os dentes,
penteia-me como quem carda.
Terra da sua experiência,
meu rosto diverte-a, parda
imagem dada à inocência.

Finjo que lhe como os dedos,
fura-me os olhos cansados,
íntima aos meus próprios medos
deixa-mos sossegados.

E tira, tira puxando
coisas de mim, divertida.
Assim me vai transformando
em tempo de sua vida».
Poema de Vitorino Nemésio, in ‘Os Poemas da Minha Vida, Praia da Vitória, Ilha Terceira, 1901-1978


A casa deserta
«Ah nada pior que a casa deserta,
sozinha, sozinha.

O fogão apagado e tudo sem interesse.
O mundo lá longe, para lá da floresta.
E o vento soprando
a chuva caindo
a casa deserta...

Ah nada pior que estes dias e dias,
de cachimbo aceso, com as mãos inertes,
com todas as estradas inteiramente barradas,
ouvindo a floresta.
Com tudo lá longe, na casa deserta,
o vento soprando
e a chuva caindo, na noite caindo...

Há uma cancela que range nos gonzos
um velho cão de guarda que ladra sem motivo
parece que é gente que vem a entrar...

E é só o vento soprando, soprando
e a chuva caindo...

Mudaram muita vez as folhas da floresta.
Os olhos do homem são olhos de doido.
Fogão apagado, aceso o cachimbo, o mundo lá longe.

E o vento soprando
a chuva caindo
a casa deserta...»
Poema de Mário Dionísio, in

Poema de Mário Dionísio, in ‘Os Poemas da Minha Vida, Lisboa, 1916-1993

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