sábado, 31 de janeiro de 2015

No 31. Memórias da Grande Guerra. Jaime Cortesão. «Pois até no período do nosso heroísmo, quando nos ocupava e se realizava a temerária empresa das Índias, o rei Manuel mandava cartas às suas vilas e cidades, explicando as vantagens de tais e tão perigosos empreendimentos»

jdact

O Génio do Povo
Junho de 1916
«(…) 11 de Abril: tomada de Kionga. Era tempo para uma hora de agitação e desafogo. Em Maio a mobilização; e agora concentram-se e exercitam-se as tropas em Tancos. É pouco? O suficiente por agora para atiçar a fogueira e alimentar a grande labareda. Todavia há quem afirme e deseje ainda a vitória da Alemanha. A propaganda germanófila continua a fazer-se descaradamente. Antes da declaração da guerra vendiam-se em Portugal 30 000 exemplares por mês do A. B. C., revista germanófila da Espanha. Diz-se que a venda diminuiu. Será. Mas vêem-se ainda por aí às dúzias os velhos fregueses deliciando-se na sua leitura.
Alguém, um médico ilustre, neutro em matéria política, a crer nas suas afirmações, mas germanófilo a atentar-lhe nas palavras, revelou-me em conversa como quem enuncia uma hipótese as esperanças deles. À minha afirmação de que a vitória da Alemanha seria a nossa ruína e possivelmente a perda da independência: que não. À Alemanha também não convém que a Espanha realize uma hegemonia peninsular. Não. Ela vence. Restaura-se a Monarquia; colocam no trono um príncipe alemão; e nem ao menos nos tiram as colónias. Alguns cortes no mapa da Europa. Talvez profundos. Mas deixarão o suficiente para um príncipe germânico se criar uma ilusão de império. Sim. Deve ser a solução conjecturada. E esta gente não pára; não desanima. No escuro vão furando sempre. Há pequenas coisas denunciadoras.
E que faz o Governo? Por que não aproveita a primavera das almas para lançar a boa semente? Oh!, por mim não se dirá que não cumpro o meu dever. De combinação com o ministro da da Guerra escrevo a Cartilha do Povo para o soldado. Mas o plano fica em meio. Por minha culpa? Não. Mas como tenho um lugar no Parlamento, é ali que me cumpre falar. A 20 de Maio faço a minha interpelação sobre a política geral do Governo; e neste caso particular dirijo-me ao António José Almeida dizendo: Até agora não vejo que o Governo tratasse de fazer a propaganda dos nossos deveres militares. Dir-se-ia que Vexa está convencido de que uma única palavra sua, espécie de Fiat jeóvico, bastará para levar os nossos exércitos à guerra. Se nos convencemos de que o nosso povo está desde já resolvido a todos os sacrifícios pela Pátria, vivemos num engano. A ideia da nossa cooperação militar, em qualquer dos campos da batalha, como necessidade nacional, que de facto é, ainda não entrou completamente no espírito público. Dizia Michelet que nos povos uma ideia apenas se torna em força e actividade quando incubada pelo sentimento e fecundada pela força do coração. Dêem-se, pois, àquela ideia, por uma larga propaganda, todos os estímulos afectivos: explique-se ao povo que esse facto importa à nobreza do nosso nome, à dignidade nacional e que o exigem todas as necessidades materiais e morais. Enquanto o Governo se esquece de a fazer, faz-se por todo o Portugal a propaganda contrária. Sabe Vexa o que fizeram os outros países, quando entraram na guerra? Eu apontarei algumas das formas que ali tomou a propaganda do Governo. Na Inglaterra, o Governo de SM Britânica foi até à propaganda pelos cartazes ilustrados afixados nas paredes e o generalíssimo Roberts, a mais culminante figura de então no exército inglês, dirigiu às crianças das escolas de todo o Reino Unido uma mensagem em que lhes explicava as causas, as vantagens e a nobreza da guerra em que a sua Pátria ia entrar. Na França, o governo da República criava o Jornal dos Exércitos, para leitura dos soldados, e ao lado dos mais ilustres artistas franceses, os membros do Governo, com Viviani à frente, foram dos primeiros a escrever para os poilus gauleses palavras de confiança, de incitamento e carinho. E na Itália, Gabriel d’Anunzio, junto ao pedestal da estátua de Garibaldi, rodeado dos membros do governo italiano, pregava aos soldados o evangelho das altas virtudes cívicas e o seu verbo de fogo desdobrava ao vento os guiões da batalha. Aqui, onde não existe a mesma educação cívica, numa nação que ainda hoje sofre do esgotamento causado pelas espantosas empresas doutras eras, Vexa não começaram essa propaganda. Pois até no período do nosso heroísmo, quando nos ocupava e se realizava a temerária empresa das Índias, o rei Manuel mandava cartas às suas vilas e cidades, explicando as vantagens de tais e tão perigosos empreendimentos. Em todos os países e em todos os tempos foi necessário para boa marcha dos negócios públicos uma estreita solidariedade entre governantes e governados. Essa necessidade avulta nas democracias e torna-se indispensável para a realização de factos como aquele que hoje o nosso brio nos exige. Essa solidariedade deve estabelecer-se com mostras da mais carinhosa atenção por parte do Governo. Que o nosso soldado saiba por que motivos sagrados é que lhe exigem sacrifícios e que tenha também a certeza de que o seu Governo, enquanto ele combater, vela carinhosamente pelas suas famílias. Só assim se estabelecerá o estado de graça e de fé que nos leve à luta e à vitória. Sente-se essa necessidade. É mister desde já levar por toda a parte a bandeira que apenas alguns trazem nas mãos». In Jaime Cortesão, Memórias da Grande Guerra, Obras Completas, Portugália Editora, Lisboa, 1969.

Cortesia PortugáliaE./JDACT