O Génio do Povo
Junho de 1916
«(…) 11 de Abril: tomada de Kionga. Era tempo para uma hora
de agitação e desafogo. Em Maio a mobilização; e agora concentram-se e
exercitam-se as tropas em Tancos. É
pouco? O suficiente por agora para atiçar a fogueira e alimentar a
grande labareda. Todavia há quem afirme e deseje ainda a vitória da Alemanha. A
propaganda germanófila continua a fazer-se descaradamente. Antes da declaração
da guerra vendiam-se em Portugal 30 000 exemplares por mês do A. B. C., revista
germanófila da Espanha. Diz-se que a venda diminuiu. Será. Mas vêem-se ainda por aí às dúzias os velhos fregueses
deliciando-se na sua leitura.
Alguém, um médico ilustre, neutro em matéria política, a
crer nas suas afirmações, mas germanófilo a atentar-lhe nas palavras, revelou-me
em conversa como quem enuncia uma hipótese as esperanças deles. À minha afirmação de que a vitória da Alemanha seria
a nossa ruína e possivelmente a perda da independência: que não. À
Alemanha também não convém que a Espanha realize uma hegemonia peninsular. Não.
Ela vence. Restaura-se a Monarquia; colocam no trono um príncipe alemão; e nem
ao menos nos tiram as colónias. Alguns cortes no mapa da Europa. Talvez
profundos. Mas deixarão o suficiente para um príncipe germânico se criar uma
ilusão de império. Sim. Deve ser a solução conjecturada. E esta gente não pára;
não desanima. No escuro vão furando sempre. Há pequenas coisas denunciadoras.
E que faz o Governo?
Por que não aproveita a primavera das almas para
lançar a boa semente? Oh!, por mim não se dirá que não cumpro o meu
dever. De combinação com o ministro da da Guerra escrevo a Cartilha do Povo para o soldado.
Mas o plano fica em meio. Por minha culpa?
Não. Mas como tenho um lugar no
Parlamento, é ali que me cumpre falar. A 20 de Maio faço a minha interpelação
sobre a política geral do Governo; e neste caso particular dirijo-me ao António
José Almeida dizendo: Até agora não
vejo que o Governo tratasse de fazer a propaganda dos nossos deveres militares.
Dir-se-ia que Vexa está convencido de que uma única palavra sua, espécie de Fiat
jeóvico, bastará para levar os nossos exércitos à guerra. Se nos convencemos de
que o nosso povo está desde já resolvido a todos os sacrifícios pela Pátria,
vivemos num engano. A ideia da nossa cooperação militar, em qualquer dos campos
da batalha, como necessidade nacional, que de facto é, ainda não entrou
completamente no espírito público. Dizia Michelet que nos povos uma ideia
apenas se torna em força e actividade quando incubada pelo sentimento e
fecundada pela força do coração. Dêem-se, pois, àquela ideia, por uma larga
propaganda, todos os estímulos afectivos: explique-se ao povo que esse facto
importa à nobreza do nosso nome, à dignidade nacional e que o exigem todas as
necessidades materiais e morais. Enquanto o Governo se esquece de a fazer,
faz-se por todo o Portugal a propaganda contrária. Sabe Vexa o que fizeram os
outros países, quando entraram na guerra? Eu apontarei algumas das formas
que ali tomou a propaganda do Governo. Na Inglaterra, o Governo de SM Britânica
foi até à propaganda pelos cartazes ilustrados afixados nas paredes e o
generalíssimo Roberts, a mais culminante figura de então no exército inglês,
dirigiu às crianças das escolas de todo o Reino Unido uma mensagem em que lhes explicava
as causas, as vantagens e a nobreza da guerra em que a sua Pátria ia entrar. Na
França, o governo da República criava o Jornal dos Exércitos, para
leitura dos soldados, e ao lado dos mais ilustres artistas franceses, os membros
do Governo, com Viviani à frente, foram dos primeiros a escrever para os poilus
gauleses palavras de confiança, de incitamento e carinho. E na Itália, Gabriel
d’Anunzio, junto ao pedestal da estátua de Garibaldi, rodeado dos membros do
governo italiano, pregava aos soldados o evangelho das altas virtudes cívicas e
o seu verbo de fogo desdobrava ao vento os guiões da batalha. Aqui, onde não existe a mesma educação
cívica, numa nação que ainda hoje sofre do esgotamento causado pelas espantosas
empresas doutras eras, Vexa não começaram essa propaganda. Pois até no
período do nosso heroísmo, quando nos ocupava e se realizava a temerária empresa
das Índias, o rei Manuel mandava cartas às suas vilas e cidades, explicando as
vantagens de tais e tão perigosos empreendimentos. Em todos os países e em todos os tempos foi necessário para boa marcha
dos negócios públicos uma estreita solidariedade entre governantes e governados.
Essa necessidade avulta nas democracias e torna-se indispensável para a
realização de factos como aquele que hoje o nosso brio nos exige. Essa
solidariedade deve estabelecer-se com mostras da mais carinhosa atenção por parte
do Governo. Que o nosso soldado saiba por que motivos sagrados é que lhe exigem
sacrifícios e que tenha também a certeza de que o seu Governo, enquanto ele
combater, vela carinhosamente pelas suas famílias. Só assim se estabelecerá o
estado de graça e de fé que nos leve à luta e à vitória. Sente-se essa
necessidade. É mister desde já levar por toda a parte a bandeira que apenas
alguns trazem nas mãos». In Jaime Cortesão, Memórias da Grande
Guerra, Obras Completas, Portugália Editora, Lisboa, 1969.
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