Diário de um louco
«(…) Eu conheço dois irmãos. É desnecessário referir os seus nomes.
Quando ambos frequentavam a escola secundária, éramos bons amigos. Passaram
depois os anos e as notícias que me chegavam mais e mais raras se tornavam. Aconteceu
porém que, não há muito, ouvi dizer que um deles estava gravemente doente.
Aproveitando uma visita que tencionava fazer à terra natal, não deixei de, num
salto, ir visitá-lo. Todavia, ao chegar, fui recebido não pelos dois, mas só
pelo mais velho. Este, agradecendo a minha deslocação vindo de tão longe,
informou-me estar já o seu irmão recuperado e em viagem. Ia tomar posse de um
cargo oficial, após as respectivas provas. E, depois de uma sonora gargalhada,
mostrou-me dois volumes manuscritos que constituíam um diário do meu antigo
amigo. Referiu o quanto aquela leitura poderia mostrar como o seu irmão mais
novo estivera doente. De todo o modo, não punha qualquer problema em que aquilo
fosse lido pelos amigos do enfermo. Assim sendo, trouxe eu comigo o dito diário.
Não foi necessário mais do que uma passagem de olhos para perceber quanto a sua
doença era do foro da mente, da esquizofrenia ou do complexo da perseguição.
Linguagem desordenada e sem lógica, do sem sentido ao disparate, sem ordem cronológica
nem referência a datas, apenas a desigualdade no carregado do traço e a
irregularidade caligráfica mostravam terem sido escritos em tempos necessariamente
diferentes. Se bem que, de vez em vez, lá surgissem períodos um pouco mais
coerentes. Mostro uma boa parte do referido texto como algo de exemplar ou como
matéria para o estudo dos médicos. É como o que segue. Não corrigi um único
erro. Apenas alterei os nomes que foram surgindo, apesar de dizerem respeito
tão só a pouco importantes aldeões. Quanto ao título, foi dado pelo próprio,
depois da sua recuperação. Assim o deixo». In 2 de Abril do ano 7.
«Esta noite está um belíssimo luar. E eu que não via um luar assim há
mais de trinta anos! Hoje contemplo-o, e isso dá-me uma grande alegria. Só agora
compreendo o quanto foi na escuridão que passei os meus últimos trinta anos.
Preciso, porém, de ter muito cuidado. Senão..., por que é que aquele cão da
família Zhao terá olhado tão
insistentemente para mim? Eu tenho razão em ter medo.
Hoje não há lua. Sei como isso é um mau sintoma. De manhã, quando saía
de casa, silenciosamente, bem que reparei no olhar estranho do senhor Zhao.
Parece que tem medo de mim, que me quer mal. Também uma boa meia-dúzia de
aldeões cochichavam sobre a minha pessoa, parecendo temer-me. Todos os que fui
encontrando pelo caminho assim faziam. Um deles, mais bruto, sorriu-me, a boca muito
aberta. Senti um frio percorrer-me da cabeça aos pés. Bem sei que eles têm tudo
planeado. Mas não me deixo intimidar, sigo o meu caminho. Estava um grupo de
crianças mais à frente. Também segredavam sobre mim e os seus olhares eram como
os do senhor Zhao, caras fechadas. Mas
que raio tenho eu que ver com as crianças? Por que se comportarão elas também assim? Não pude
deixar de gritar: Digam-me! Mas fugiram. Pensava por que carga de água havia eu
de ter alguma coisa que ver com o senhor Zhao, ou com as outras pessoas da rua.
Tanto quanto sei, nunca lhes fiz mal algum. Aconteceu apenas que, já la vão
vinte anos, maltratei um livro de história de um velho senhor. Parece que ele
terá ficado muito zangado. Mas estou em crer que o senhor Zhao nem conhece esse
velho. Será que ouviu dizer qualquer coisa e vem agora fazer justiça não encomendada? E terá mesmo
combinado com todos os outros, agora meus inimigos! Mas, e as crianças? Quando isso se passou nem nascidas eram.
Como é possível que também elas me olhem com olhares esquisitos, como que com medo de mim? Que me queiram mal? É isto o que
me inquieta, o que está para além da minha compreensão. E, me entristece. Compreendi!
São as mães que assim as ensinam!
Não dormi bem durante a noite. As coisas precisam de ser bem
investigadas, há que vê-las com maior clareza. Quanto a eles, uns foram
condenados a açoites pelos oficiais locais, outros apanharam na cara bofetadas
dos ricos, outros ainda souberam a esposa violada por funcionários
governamentais, houve mesmo quem visse os próprios pais atirados para o
suicídio pela opressão dos credores. Mas não tinham, nem mesmo então, caras tão
horrorizadas e agressivas como ontem. A mais estranha foi aquela mulher na rua
a bater no filho, dizendo: Palerma o
que me apetece é morder-te! Mas com os olhos fixos em mim. Eu
assustei-me. E denunciando eu o medo, os outros, com caras maldosas e dentes de
lobo, desataram às gargalhadas. Foi quando Chen Lao-wu, o nosso criado, correu
para mim e me puxou para dentro de casa». In Lu Xun, Ervas Silvestres, tradução
do chinês de Sun Lin e Luís Cabral, Fundação Oriente, Edições Cotovia, Lisboa,
1997, ISBN 972-8028-960-2.
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