«Ele não acredita no Paraíso mas
acalenta a esperança da condenação eterna». In Virginia Woolf
As patologias da dívida
«(…) Um professor francês expatriado na Líbia, chocado com as caricaturas
de Maomé no Inverno de 2006, e notando os ânimos exaltados dos seus estudantes,
escreve uma carta ao jornal, Le Monde
(Robert Solé, 19-20 de Fevereiro de 2006) na qual comunica a sua indignação e
conclui com as seguintes palavras: Somos
ainda os senhores do mundo e parecemos ter esquecido todos os outros. Somos
os senhores do mundo! Proferida por um Disraeli ou um Jules Ferry, há mais de
um século, a frase não teria causado surpresa. Mas hoje num jornal de esquerda,
que presunção! Veremos que esta ânsia de poder é paradoxalmente motivada por um
remorso inextinguível.
Ceder o coração ao inimigo
A Europa tem indubitavelmente parido monstros. Tem de igual modo gerado
teorias que permitem compreender e destruir esses mesmos monstros. Porque,
desde o tempo dos Conquistadores, a Europa elevou ao mais alto nível a aliança
do progresso e da crueldade, do poder técnico e da agressividade e, uma vez que
se deparou com séculos de orgias sanguinárias, também se tornou extremamente
sensível às loucuras da espécie humana. Substituindo os Árabes e os Africanos,
a Europa instituiu o tráfico negreiro transatlântico mas engendrou também o
abolicionismo e pôs fim à escravatura antes de outras nações. Cometeu os piores
actos e pôs em prática meios para erradicar o mal. A singularidade da Europa é
um paradoxo levado ao extremo: da ordem medieval nasce o Renascimento, do
feudalismo a aspiração democrática, da opressão da Igreja o século das Luzes.
As guerras de religião favorecerem o pensamento laico, os antagonismos
nacionais a esperança de uma comunidade supranacional, as conquistas
ultramarinas suscitam o anticolonialismo, as revoluções do século XX o
movimento antitotalitário. A Europa, semelhante a um carcereiro que nos
aprisiona e nos cede as chaves da cela, deu simultaneamente à luz o despotismo
e a liberdade. Enviou militares, mercadores e missionários (daí o importante
papel desempenhado pelas Igrejas nos processos de descolonização, excepto em
Portugal onde a Concordata de 17 de Maio de 1940 submetia as missões católicas
ao controlo do Estado) para subjugar e explorar terras longínquas. Inventou
também e antropologia que é uma certa forma de ver pelos olhos do estrangeiro, de
pensar o outro em si e de se pensar no outro, numa palavra, é, uma certa forma
de nos afastarmos daquilo que nos é próximo para nos aproximarmos daquilo de
que nos afastámos.
Nesta área, a França cometeu abominações. É também graças à França que
delas nos libertámos quando, finalmente, após convulsões terríveis, passou a
conciliar os seus actos e os seus princípios. A aventura colonial padecia
mortalmente de uma dupla contradição; impunham-se a populações longínquas
costumes particulares, ornando-os com a máscara do universal. Impor pastis e baguettes aos Africanos e pudding
aos Hindus era manter um império à custa do tribalismo. Portanto, sujeitando
continentes às leis de uma metrópole que lhes inculcava por outra via ideias nacionais
e a noção do direito dos povos à autogovernação, britânicos, franceses e holandeses
entregaram aos dominados os instrumentos da sua emancipação. Os colonizados que
reclamavam a sua independência limitaram-se e invocar as regras que tinham
aprendido com os senhores e a expulsá-los com as armas que estes
inadvertidamente lhes tinham cedido. Por exemplo, foi em nome dos direitos do
homem e do cidadão que, nos finais do século XVIII, os escravos do Haiti e de
São Domingos se revoltaram e discutiram os
fundamentos do novo contrato social que tinha por base a abolição da escravatura,
a igualdade racial, e o fim da sociedade colonial e que, em 1954, os novos dirigentes históricos da
FLN argelina erem fruto da escola francesa e absorviam os ideais
revolucionários que os incitariam a sublevar-se contra Paris». In
Pascal Bruckner, La Tyrannie de la Pénitence, Essai sur le Masochisme Occidental,
Editions Grasset Fasquelle, 2006, O Complexo de Culpa do Ocidente. Publicações
Europa-América, 2008, ISBN 978-972-1-05943-6.
Cortesia de PEA/JDACT