Jamais houve homem menos
maquiavélico do que Maquiavel. In Villari
Maquiavel, o prisioneiro do maquiavelismo
«(…) Mas foi no campo da política que a obra sofreu as mais diversas
interpretações e serviu para legitimar as mais distintas ideologias: caucionou
tiranias e foi tida como expoente de democracia, apontada como exemplo de
realismo político e como manifesto de resistência amarga de uma vítima do poder.
O marxista Antonio Gramsci (1891- 1937) leu apreciativamente o
livro na frieza do cárcere, o fascista Benito Amilcare Andrea Mussolini (1383-1945) citou-o, como exemplo,
nos seus histriónicos discursos. O Príncipe é, pois, uma excelente
demonstração de que no devir da História cada coisa contém em si própria o
ridículo do seu contrário. Antonio Gramsci, Note sul Machiavelli sulla
Politica e sullo Stato Moderno, 1971.
A visão apreciativa de O Príncipe havia sido considerada
criminosa na União Soviética; Lev Kamenev (1883-1936) traduziu em 1934 o livro para russo, citando-o como
um precursor das análises de Marx, Engels, Lenine e Estaline. Tal ousadia e
outras afins custar-lhe-iam a vida, acusado em 22 de Agosto de 1936 por Andrei Vyshinsky, o procurador
soviético, aquando do seu julgamento no quadro das grandes purgas estalinistas.
… que os cães enraivecidos sejam
mortos a tiro!, pediu Vyshinsky nas suas alegações finais! E
foram. Livro herético, ele moveu, logo desde o século XVI, uma cruzada antimaquiavelista,
que levantou pendão nos campos de batalha do pensamento filosófico, histórico,
político e ético, mobilizando forças para o enfrentar, como se contra o próprio
Demónio se travasse esse combate. Curiosamente, parte substancial dessa peleja
passou por Portugal como uma decorrência do mandato ingente da propagação do
império através da fé.
Espanha e Portugal colocam-se desde a primeira hora em oposição política
a O
Príncipe, escreveu, em 1939,
Vergílio Taborda, professor da Faculdade de Letras de Coimbra (… falecido com pouco mais de trinta anos,
Vergílio Taborda escreveu, ainda como estudante, um estudo intitulado Maquiavel
e Antimaquiavel, que a editora Atlântida editaria em 1939 e que
mereceria uma nota prévia de Francisco Morais, Manuel Lopes d'Almeida e Paulo
Quintela. Citando como seu mestre Gonçalves Cerejeira, cardeal-patriarca desde 1929,
e que é um dos mais lídimos pensadores da doutrina católica, Taborda regista que
desde a segunda parte do século XVI e por todo o século XVII os contraditores
de Maquiavel são aqui legião, da rosa dos ventos do saber: teólogos,
canonistas, filósofos, políticos, juristas, diplomatas, clérigos, laicos, nobres
e plebeus), quatro anos depois de ter surgido, pela mesma editora, a
primeira versão do livro em língua portuguesa. E porquê? Porque, escreve Taborda, defendendo a cidadela da fé em todos os campos, a Península não
deixaria de fazê-Lo também no da política. O maquiavelismo era a expressão
máxima da política nova, realista e pagã: combatendo-a, as nações peninsulares
não se afastavam do caminho que se haviam proposto percorrer. Eis, encontrada
no espírito do seu tempo, a bandeira intemporal de um exército que ainda hoje
se não desbaratou e cuja linha da frente é encabeçada pela defesa da moral
religiosa enquanto conceito ético do poder justo, contra a visão pessimista da realidade humana, contra a política de força, a política
de dissimulação e de perfídia.
No ano passado (2007), Martim Albuquerque, um historiador de pensamento
filosófico conservador e de inspiração religiosa, dedicado à história das
ideias políticas, publicou um livro em que defende a tese segundo a qual o pensamento
maquiavélico, eis como o trata, é incompatível com o que chama a ética
tradicional portuguesa, a mesma que, segundo ele, criou a figura do fidalgo,
seu antagonista e da sua moral prática. O livro amplia um outro, escrito em 1973 e publicado em 1974 pelo Instituto Histórico
Infante Dom Henrique, da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, que se
inspirara num trabalho sobre o mesmo tema e, curiosamente, com o mesmo
título escrito por Mário Albuquerque, em 1954.
Trata-se de uma obra de fôlego, profundamente documentada, que permite ao autor
concluir que o pensamento tradicional português é antimaquiavélico (?) e que o maquiavelismo é incompatível
com a necessidade da expansão e com a psicologia de um povo sonhador de
quinto-impérios e criador do tipo ideal do fidalgo. O Príncipe é, pois, um
pequeno livro que ainda hoje suscita grandes paixões na delimitação da fronteira
entre a virtude e o pecado no campo da política e da própria filosofia do comum
viver. Sucedeu assim porque o autor e a obra, uma vida e um livro, uma narrativa
e uma doutrina, se confundiram numa mistura sincrética, pela qual se condenou à
maldição eterna este opúsculo que, numa fórmula de Bertrand Russell, é um livro
para gangsters. Mas não pense o leitor que tem em mãos páginas que
apenas suscitaram censura e concitaram contra si detractores e maldizentes.
Fazendo contemporânea recensão do muito que se escreveu sobre Maquiavel,
Isaiah Berlin, um espírito lúcido e erudito, acumularia um tão vasto acervo de
epítetos, tão pitorescos quanto entre si contraditórios, a propósito do secretário,
tudo a mostrar que, amado ou odiado, ele teve o condão de, secula seculorum, não
deixar ninguém indiferente e muitos tomaram mesmo partido em seu favor.
Benedetto Croce considera-o um homem de uma
austera e dolorosa consciência moral, Ridolfi acha-o um cristão especial». In
Nicolau Maquiavel, O Príncipe, Introdução de José António Barreiros, tradução a
partir do original de Maria Jorge Figueiredo, Editorial Presença, Lisboa, 2008,
ISBN 978-972-23-3951-3.
Cortesia de EPresença/JDACT