Londres e Kimbolton. Outono de 1535
«(…) Os italianos pensam que não. Dizem que a estrada entre Inglaterra
e o Inferno está gasta de todos os pés que a pisam e é toda a descer. Todos os
dias pondera o mistério dos seus compatriotas. Viu assassinos, sim; mas viu um
soldado faminto dar um pão a uma mulher, uma mulher que não lhe é nada, e
voltar-lhe as costas com um encolher de ombros. O melhor é não pôr as pessoas à
prova, não as forçar à desesperação. Fazê-las prosperar; tendo o supérfluo,
serão generosos. As barrigas cheias criam brandos costumes. A beliscadura da
fome, monstros. Quando, alguns dias depois do seu encontro com Stephen Gardiner,
a corte itinerante alcançara Winchester, tinham sido sagrados novos bispos na
catedral. Os meus bispos"
chamava-lhes Anne: evangelistas, reformadores, homens que viam em Anne uma oportunidade.
Quem poderia ter pensado que Hugh
Latimer seria bispo? Seria mais de prever que acabasse queimado,
encarquilhado em Smithfield com o evangelho na boca. Mas também quem poderia
ter pensado que Thomas Cromwell havia
de ser alguém? Quando Wolsey caiu, podia ter-se pensado que sendo
servidor de Wolsey estava arruinado. Quando a mulher e as filhas morreram podia
ter-se pensado que a sua perda o mataria. Mas Henry voltou-se para ele; Henry
ajuramentou-o; Henry pôs o seu tempo à disposição dele e disse, vinde, senhor
Cromwell, dai-me o braço: através dos pátios e das salas de trono, a senda da sua
vida está agora plana e desobstruída. Em novo teve sempre de abrir caminho com
os ombros através das multidões, furando até à frente para ver o espectáculo.
Mas agora abrem-se as multidões quando caminha através de Westminster ou dos
recintos de qualquer dos palácios do Rei. Desde que foi jurado conselheiro, as
bancas, os caixotes e os cães soltos são varridos do seu caminho. As mulheres
silenciam o seu murmúrio e puxam as mangas para baixo e ajustam os anéis nos
dedos, desde que foi nomeado chanceler-mor. Os detritos das cozinhas, a tralha dos
escrivães e os bancos da gente baixa são atirados para os cantos e para fora da
vista, agora que é o secretário-mor do Rei. E ninguém, salvo Stephen Gardiner,
corrige o seu grego; não agora, que é reitor da Universidade de Cambridge.
O verão de Henry correu, em geral, muito bem: através do Berkshire, do
Wiltshire e de Somerset mostrou-se ao povo nas estradas e (quando não chovia a
cântaros) o povo juntou-se ao longo das estradas e aclamou-o. Porque não haviam de o fazer? É
impossível ver Henry sem se ficar deslumbrado. Cada vez que o vemos impressiona-nos
de novo, como se fosse a primeira vez: um
homem maciço, com um pescoço de touro, com o cabelo a recuar, a cara a engordar,
olhos azuis e uma boca pequena que é quase feminina. Mede quase um metro e
noventa de altura e cada centímetro exprime poder. O seu porte, a sua pessoa
são magnificentes; as suas fúrias metem medo, os seus votos e pragas, a suas
lágrimas de lava. Mas há momentos em que o seu grande corpo se espreguiça e
relaxa, o seu semblante se desanuvia; deixa-se cair a nosso lado num banco e
fala connosco como se fosse nosso irmão. Como poderia falar um nosso irmão, se
o tivéssemos. Ou mesmo um pai, um pai de um género ideal: como estás? Não
estás a trabalhar de mais? Jantaste?
O que é que sonhaste ontem? O
perigo de um caminho destes é o de que um rei que se senta em mesas vulgares,
numa cadeira vulgar, pode ser tomado por um homem vulgar. Mas Henry não é
vulgar. Que importa se o seu cabelo
está a recuar e a sua barriga a avançar? O Imperador Carlos, quando se
olha ao espelho, daria uma província para ver as feições do Tudor em lugar do
seu próprio semblante torto, o nariz de gancho quase a tocar o queixo. O rei
François, um pau de vassoura, empenharia o seu delfim para ter uns ombros como
os do rei de Inglaterra. Quaisquer qualidades que tenham lhas devolve Henry, em
dobro. Se são cultos, ele é duas vezes mais culto. Se misericordiosos, ele é o
próprio exemplo da misericórdia. Se galantes, ele é o padrão da cavalaria
andante, do maior livro de cavalaria que se possa imaginar. Seja como for: em
cervejarias de aldeia por toda a Inglaterra culpa-se o rei e dona Anne Boleyn
pelo tempo: a concubina, a grande meretriz. Se o rei aceitasse de volta
a sua mulher legítima, Catarina, a chuva pararia. E, na verdade, quem duvida de
que bastaria para que tudo fosse diferente e melhor que a Inglaterra fosse governada pelos idiotas de aldeia e os seus amigos
ébrios?» In Hilary Mantel, Bring Up the Bodies, 2012, O Livro Negro, Civilização
Editora, Porto, 2013, ISBN 978-972-26-3594-3.
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