«(…) Mais! Numa rubrica atributiva do primeiro destes cancioneiros
encontra-se Guilhadi, ao passo que na mesma coluna, na poesia que
imediatamente se segue à rubrica, está escrito Guylhade; e analogamente
no segundo cancioneiro: Guilhadi na rubrica, e Guylhade
no cantar por ela encabeçado. E, já agora, uma pequena amostra das grafias
respeitantes ao nome de um e o mesmo lugar, em dois documentos do século XIII: Guilado no documento de 1255, e Guiladi no de 1258.
Para além do nome
Ao apresentar materiais coligidos, tive em conta a importância que todos os membros do nome completo do
trovador têm ou podem ter para os capítulos que se seguem. Vejamos, então, a
base que o nome completo nos oferece para o correcto desenvolvimento do nosso
tema: João é prenome vulgar: assim se exprimiu
Carolina Michaëlis, a propósito de um dos vários poetas medievais a quem foi
dado este prenome, de origem hebraica, frequentíssimo, por exemplo, nas Inquirições de 1220 e 1258. Muito menos
frequente é Garcia, acerca do
qual a mesma distintíssima autora afirmou que é nome de pessoa exclusivamente peninsular. E já anteriormente,
referindo-se a Guilhade, escrevera: Julgo
que o poeta era filho de um Garcia. Recorde-se, a propósito, o genitivo
patronímico Garcie, de origem latina
(- ae), do nome completo do trovador,
exarado nas Inquirições citadas no
começo deste capítulo. Quanto a João
Garcia, numerosos são, no século XIII, os indivíduos assim chamados, e
este facto prenuncia a grande importância do apelido Guilhade, no que
concerne à determinação da terra de origem do poeta e, portanto, à identificação
deste João Garcia.
Com efeito, no caso de Guilhade, como em muitíssimos outros,
trata-se de um apelido geográfico, isto é, indicativo do local de nascimento
(ou, não raro, de habitação): cidade ou vila, povoação, mesmo pequena ou pouco
importante, sítio, região... Aliás, entre os nomes de poetas medievais, não
faltam exemplos de apelidos geográficos de naturalidade. Eis alguns: Bonifácio
Calvo de Génova,Estêvão Fernandes de Elvas, João Peres de Aboim e Pero Garcia de Ambroa. Assim, quando o nosso trovador,
autonomeando-se, empregou o apelido Guilhade,
de origem germânica, assinalou aos investigadores uma inigualável pista para a
indagação do lugar que lhe serviu de
berço (Carolina Michaëlis).
A Pessoa. Trovador. Plano
Conformemente ao anunciado na selecção temática, não vou deter-me
nalguns temas cujo desenvolvimento, embora oportuno aqui, não se afigura assaz
importante para o objectivo principal que tenho em vista. Um desses temas é o
do exacto número de composições do nosso poeta, cantigas de amigo, de amor,
e de escárnio e maldizer, conservadas nos três cancioneiros (da Ajuda,
da Biblioteca Nacional e da Vaticana). Segundo a contagem actualmente mais
aceita, esse número é 54. De
qualquer modo, estamos perante um dos mais fecundos agentes do trovadorismo
galego-português. Outro daqueles temas, em cuja integral exposição caberiam
reflexões de ordem teológico-moral, tem a ver com o alegado espírito herético, que se reflecte [...]
nas canções do trovador João de Guilhade, e com aqueles dos seus versos
que poderiam ser aproveitados, e já o foram, para uma antologia de obscenidades
trovadorescas.
Nível poético
Guilhade terá sido trovador de
seu ofício, trovador ex professo,
com casa sua e jograis às suas ordens. No entanto, o que eu principalmente desejo
aqui acentuar não é o seu grau na jerarquia poético-social. É, sim, aquilo que
o distingue e notabiliza como poeta. Eis, a propósito, alguns dos numerosos
depoimentos de autores: um dos engenhos
mais notáveis do seu meio; Guilhade
revela sempre grande facilidade técnica, vivacidade e, não raro, um sentimento
poético admirável, principalmente para a época; um dos melhores senão o melhor trovador do século XIII; um dos mais belos génios literários do
século 13, espírito chistosíssimo; uma
das musas mais graciosas e travessas do século XIII.
Documentando principalmente as duas últimas apreciações agora mesmo
transcritas, aponto, como exemplo, uma cantiga que tem merecido especialíssima
atenção de autores que se ocupam da sátira medieval galego-portuguesa: trata-se
de uma célebre cantiga, graciosa poesia, extremamente engraçada, uma paródia bem humorada à teoria do amor
cortês e às suas exigências. Vem no Cancioneiro da Biblioteca Nacional
e no Cancioneiro da Vaticana e é do teor
seguinte:
«Ai, dona fea, fostes-vos queixar
que vos nunca louv'en meu cantar;
mais ora quero fazer un cantar
en que vos loarei toda via;
e vedes como vos quero loar:
dona fea, velha e sandia!
Dona fea, se Deus mi pardon,
pois avedes tan gran coraçon
que vos eu loe, en esta razon
vos quero já loar toda via;
e vedes qual será a loaçon:
dona fea, velha e sandia!
Dona fea, nunca vos eu loei
en meu trobar, pero muito trobei;
mais ora já un bon cantar farei,
en que vos loarei toda via;
e direi-vos como vos loarei:
dona fea, velha e sandia!»
In António da Costa Lopes, O Trovador Guilhade e a sua Terra de Origem,
Câmara Municipal de Barcelos, 2003, DLegal nº 196982/03.
Cortesia da CM de Barcelos/JDACT