Ensaios
críticos. Os Novelistas
«A
repetição de geração em geração das concepções simbólicas que a ignorância
primitiva da humanidade elaborou, como idónea explicação do problema do
universo em que se sentia, tão facilmente se compreende como determinou a
epopeia, na sua particularidade filosófica e religiosa, como se apercebe a
filiação do poema, no seu condicionalismo de representação de nacionalidade,
pela transmissão oral das lendas acerca da constituição e vida primeva da pátria.
A forma que convinha espontaneamente a estas composições era a métrica, visto
como o verso se incrustaria na memória dos ouvintes, entre os quais seria restrito
o curso das cópias da produção artística. Preenchido o ciclo de versificação das
grandes tradições referentes ao começo da terra e à razão do mundo, à fundação
das sociedades combatentes em que o homem se disciplina na solidariedade da
luta pela existência; elaboradas as grandes epopeias cosmogónicas, morais e
políticas, de que chegaram até nós os modelos nos vastos poemas hindus e
gregos, prevê-se que numa entidade política de vida já assente, em que aos
poucos o génio humano se vai desprendendo das ficções de que se alimentara,
mercê duma aquisição progressiva do espírito de análise, de abstracção e generalização,
com o conhecimento positivo da fenomenalidade devia tender a obliterar-se, com
o processo psicológico que conduzira à epopeia, a forma literária que a servira.
É o que, com efeito, vemos na Grécia, onde desponta o romance em prosa tal como
o havíamos de possuir nas nossas civilizações e revestindo quase todos os
aspectos de que no nosso mundo cristão havia mais tarde de dotar-se
opulentamente.
Sem
seguir um estudo interessantíssimo mas que salta fora do quadro deste volume,
notaremos de passagem que na literatura helénica se desenrola com uma nitidez
maravilhosa esta crescente degenerescência da epopeia no romance, caracterizada
não só no conceito meramente formal da prosa, como na essência da composição,
tecendo a sua trama não do brocado de seda e ouro do ideal passado, mas
cruelmente fazendo-lhe a crítica em Evémero, ou aspirando pela sociedade justa
do futuro, como em Platão, pedra-de-toque das utopias vindouras de Campanella,
de Bacon, de Harrington, de Fénelon e de Cabet. Nesse magnificente mundo grego
o romance, tomado como a simples narrativa de um caso fantasiado, sem outro
intuito mais do que o de deleitar as imaginações aborridas das tristezas da
vida quotidiana, aparece-nos também, mais ou menos integralmente em tal
categoria, pela amplificação literária que do fundo comum das tradições
populares fez do milionário repositório das fábulas milesianas, entre outros, Lucius,
de Patras, no Burro, de que,
com a sua versão da Metamorfose,
o africano Apuleio dotou a gente latina. Rico de capacidade política e
administrativa, que o fez grande na ciência do direito, por ele posto em bases
eternas, o romano é escasso de compreensão literária; e, desde que emerge da
sua barbárie guerreira de séculos, absorvido no assombro dos modelos gregos, a
sua literatura ressente-se desta falta de elaboração lenta, em que na grosseria
da expressão literária, balbuciantemente encontrada, se depara com o veio aurífero
da personalidade, definida e caracterizada.
À
literatura latina macula-a o seu carácter anti-nacional, ela é apanhada
continuamente em delito de cópia; e, assim, a sua epopeia, por mais gloriosa
que seja a sistematização versificada de filosofias estranhas, em que lateja o
futuro, por Lucrécio esboçada no seu poema genial; por maior que avulte o
esforço de Virgílio em apontar à sua pátria essa ideia messiânica que extasia
Proudhon, a estampagem sobre moldes exóticos é tão persistente que não há
desmentir o asserto enunciado. E, todavia, é notável como havendo a imaginação helénica
desbravado por tão longe o campo do romance, na sua imitação a literatura
latina descurasse esse género, porventura considerado fútil por uma raça de
declamadores enfáticos para quem as empoladas fraseologias eram, nos hábitos da
tribuna, uma solicitação contínua». In Sampaio Bruno, A Geração Nova, Ensaios
Críticos, Os Novelistas, Livraria Chardron, Lello e Irmão Editores, Porto,
1984.
Cortesia
de Lello/JDACT