Dor em que te enclausuraste
A Florbela
Espanca
«O nosso sorriso vivo
por ser claro e certo
foi como um campo de linho puro
que vestiu de branco o luar.
Os instantes alados de eternidade
nascidos em nós,
cedo se desfizeram…
Desses instantes restaram
fragmentos
de histórias que os povoaram
como quando se acorda de um sonho…
Onde estão agora as pedras
emersas do rio
nas quais poisaste os pés
sempre que me abraçaste?
A altura dessas pedras era
grande!…
Era a altura da linha de água
acrescida
do nosso amor…
Hoje, no rio, só se adivinham
pedras imersas,
junto da tua respiração afogada.
A fundura dessas pedras é
grande!...
É linha de água
acrescida da fundura da nossa dor…
O rio onde o amor nasceu e correu
foi o mesmo rio onde o amor
esmoreceu
e morreu...
Sem mais além para ir
a vivermos
o futuro foi morrendo
despindo pouco a pouco de alma
a gente…
Sempre que cri ver-te,
tua aura esmorecida senti-a tão
distante
quanto o meu coração de mim…
Por o teres levado contigo…
Hoje, mais do que nunca,
sinto a dor
em que te enclausuraste…
Essa dor
que te levou a partir imersa em
água
sem me perguntares se queria ir
contigo…
Sem nos darmos conta perdemo-nos
entre a foz e a nascente…
Tornaremos a achar-nos
no poente
das coisas invisíveis?…
Neste instante solitário,
cheio de lembranças tuas,
sou já, no rio,
corrente vertical descendente…
Porque sei
que,
ao pôr-do-sol, me esperas…
Poema de Joaquim Carvalho, in ‘Nova Águia’
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