Maio
«(…) Depois, nesse mesmo dia, logo que percebi que espécie de bicha era
a mais velha, tudo foi de vento em popa. Não tinham maneiras. Paciência! De resto,
não tardou muito que me desse conta, de que aquela criatura bem pouco se
parecia com as bifas que por aqui passam. Queria saber tudo, entender as
pessoas e as coisas, tomar posse da gente. As outras talvez se estejam nas
tintas, mas a verdade é que costumam tratar-me com toda a consideração, porque
na terra delas é uso respeitarem-se uns aos outros, ricos e pobres, e até
porque, enfim, o carro, no fim de contas, sempre é meu... Esta só está bem a
mandar, até quando julga que pede e até mesmo, enfim... Mas, agora que a
conheço melhor, a verdade é que deve ser assim com toda a gente. Não é por eu
ser para aqui um zé-ninguém.
Põe-se a olhar para dentro dos nossos olhos e, de repente, estoira a rir, com uns
dentes aguçados, que até faz impressão. E, apesar disso, quando está séria, não
é feia de todo, tem mesmo a cabeça bem lançada; e o corpo, em se arranjando, parece
o de uma mulher de pouco mais de trinta. O que nela há que nos aflige como o
raio e, ao mesmo tempo, talvez me atraia, nem sei dizer o que me acontece com ela,
tanta confusão a criatura me faz, são aqueles olhos amarelos, de mocho, que me
vasculham de alto a baixo. E a mania que tem de se meter na minha vida com perguntas
sem jeito nenhum, e os disparates que não se ensaia nada para fazer no meio da
rua, envergonhando qualquer homem que a acompanhe!...
Sim, porque isto aqui, apesar de tudo, a gente sempre tem os nossos hábitos,
e em Roma sê romano, não é?,
como diz o Manelzinho da Comissão de Turismo, o macacão de rabo pelado, que passa
a vida a gozar lá por fora e em aqui chegando são logo missas que é um gosto e
mais Junta Paroquial e União Nacional e Irmandade dos Passos, batendo no peito
muito santificado, e com o papo cheio daquelas garotonas de Sevilha e de toda a
estranja para onde os de lá de cima o encomendam volta não volta... Por sinal
que a caminho de Armação mandou-me ela parar o carro para perguntar a uma desgraçadita,
que era um esfregão, se lhe queria vender a saia. A pobre, para começar, não a
percebia, e antes assim: se não, era capaz de se indignar. Não faça caso, tiazinha, dizia-lhe eu com os olhos. E para a
francesa: - olhe que saias bonitas são
as da Nazaré, estas daqui não têm nada de especial. E não se mercam assim no
meio da estrada. Mas não a convenci. Achou-nos apenas uns ursos, sem
sentido de humor.
De toda a maneira, aquele passeio vinha mesmo a calhar, cá para a minha
bolsa. Então agora que o Luisito anda a precisar tanto de óleo de fígado de
bacalhau e de umas injecções para enrijar, a Marta nem se cala com isso de
manhã à noite. Tenho mas é de levá-lo ao médico Sereno, logo que possa. Mas que hei-de eu fazer? Se, os
mais dos dias; tenho o carro parado ali na praça, à espera do comboio ou de que
alguém me chame! Se até chego a fazer o preço da dez tostões por quilómetro,
que nem me dá para a oficina, quando o que devo cobrar são dois escudos! Mas um
homem acaba por se aborrecer de estar para ali, às moscas, a secar. Chego mesmo
a ter saudade da vida miserável, mas mexida, que levava quando era chofer em Lisboa, a fazer a barba aos
outros carros, a ultrapassá-los à má cara, se não fosse a bem, guina à direita,
torce à esquerda, trava, acelera, para passar antes de o sinal ficar vermelho. Cada
corrida! Um regabofe!» In Urbano Tavares Rodrigues, Imitação da
Felicidade, Publicações Europa-América, Mem Martins, colecção Século XX, 1988.
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