«(…) Sorrio ao dar-me conta de ter pensado a rapariga, e não a Teresa;
esta impessoalidade espontânea é um alívio. Quando, à despedida, lhe perguntei
o nome, senti nela uma reprovação: eu devia sabê-lo, já mo tinha dito à
chegada. A minha pergunta, estou certo, interpretou-a como um sinal de
indiferença ou, talvez, de afectação de indiferença. Mas não havia afectação,
apesar da atracção física que, evidentemente, senti. O facto de, ainda agora,
pensar nela como a rapariga e não a Teresa prova-me, ou, pelo menos,
sugere-me, que a atracção é epidérmica, o que leio como um bom sinal (porém, tudo
isto me reconduz à tal reflexão que pretendo adiar). Perdi-me neste debate
íntimo em que receio distinguir os sinais precursores da senilidade gagá: o
processo de gagaificação deve começar assim, fixando atenções e energias em
torno de noções vagas, sem interesse nem sentido, que no entanto surgem perante
os olhos do gagaificante como coisas ponderosas, da maior importância. Quem me
salva da distracção é o João Carlos, que entra na sala sem que eu tenha ouvido
bater a porta da entrada.
Depois das saudações, discute comigo aquilo a que chama a questão de prioridade
absoluta, ou seja, o jantar. Menciona três ou quatro restaurantes situados a
uma distância que permite e mesmo recomenda uma deslocação a pé, apesar da chuva,
e fala nas especialidades das respectivas cozinhas. Mas eu encontro-me agora
numa estranha disposição de espírito. O mundo continua a pesar sobre os meus
ombros, até com mais força, e não consigo içar no meu mastro a bandeira da
gastronomia, símbolo de saudáveis entusiasmos. - Se queres conhecer o fundo do
meu pensamento, digo-lhe então, confesso que prefiro comer qualquer coisa aqui
mesmo, nem que sejam bolachas e água da torneira. Chove lá fora, não sei se
reparaste. A quem o dizes, replica ele, ao mesmo tempo que estremece de horror
à ideia de bolachas e água da torneira. Depois olha-me com incómoda atenção,
porém sem discutir, o que é invulgar. E acabamos sentados frente a frente à
mesa da cozinha diante de carnes frias, pão de ontem e uma garrafa de vinho
tinto, uma reserva do Douro. Enquanto comemos pergunto-lhe se a nova revista é
para falir já ou só no próximo ano. É a quarta que ele lança; a anterior durou
dois anos, mais tempo do que eu julguei possível. O João Carlos tem, entre
outros, um mérito que não só reconheço como admiro: consegue fechar a tempo,
antes que o buraco financeiro o deixe afogado em dívidas e o condene ao calote múltiplo.
Virtude raríssima. O único caso do meu conhecimento. É verdade que possui
outros rendimentos, sem os quais, aliás, não haveria revistas. Outros senhores
de posição têm amantes; ele tem revistas.
Pergunto-lhe qual o nome desta, pois já o esqueci. - Tempo Futuro,
responde orgulhosamente. – Como vês, só o título é um programa. Acometido de
uma sede inexplicável, esvazio o meu copo de vinho, depois encosto-me ao
espaldar da cadeira. - É um pouco menos desastroso que o anterior, mas não se
pode dizer que seja brilhante. Ele encolhe os ombros, recusa-se a discutir,
fala-me então da colaboração que espera de mim e remata: - Eu podia dizer que
aceito passivamente aquilo que quiseres fazer, mas já conheço a tua preguiça.
Interrompo-o para protestar, ele ignora a interrupção. - Uma crónica todas as
semanas, tema à tua escolha. E uma peça grande por mês, seja artigo, reportagem
ou entrevista. Mais umas pequenas coisas irregulares, sem compromisso, que
farás se quiseres e puderes. - É muito, respondo, mesmo antes de pensar. - E
não sei o que possa fazer para uma revista chamada Tempo Futuro, porque
eu estou cada vez mais passado. - Uma mer… Vamos
para a sala? Deixamos a cozinha tal como está, desarrumada, porque a
mulher-a-dias vem amanhã. Já instalados na sala, ele com um cigano irrequieto e
eu a encher o cachimbo, continuamos a discussão, ou melhor, eu ouço-o falar e,
para dizer a verdade, não o ouço com muita atenção, deixo correr os seus
argumentos. Fixo-me no ruído da chuva a agredir a vidraça. Porque ainda não
parou de chover. Levanto-me, vou até à janela que rasga a sala a toda a
largura. Nas minhas costas, a voz dele fustiga-me: E além do mais, o interesse
não é só meu. Tanto quanto sei, não
ficaste rico da noite para o dia, pois não?
Era uma boa ideia, respondo sem me voltar. Desgraçadamente, ele tem
razão, os direitos de autor e o rendimento de economias passadas, que sofreu
uma respeitável talhada com o meu divórcio, não me deixam margem para grandes fantasias.
O João Carlos prossegue, indesviável: - Enquanto essa boa ideia não se
concretiza, vais precisando de dinheiro, tens de pagar a educação do teu puto.
E enquanto trabalhas para mim continuas a ter tempo para escrever, está longe
das minhas intenções querer privar a literatura portuguesa de uma luminária tão...,
tão luminosa. Mas há outra coisa, ainda...» In João Aguiar, A Catedral Verde,
(A Crónica de Santo Adriano), ASA Editores, Porto, 2006, ISBN 972-41-2412-6.
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