Uma introdução à sua leitura
«(…) E o sinal positivo da morte, refúgio e
descanso perante uma vida inclemente e dura, manifesta-se, por exemplo, na
utilização de certas palavras em sentido oposto ao habitual; assim, a morte é a
vida, morrer é receber a luz: A queda
do cavalo não foi para mim a morte, mas a vida. Assim o determinou o eterno
Deus: a luz, não ma tirou, deu-ma (pertence ao ideário cristão, mas
também ao de certas filosofias clássicas, como o platonismo e o pitagorismo,
esta crença na verdadeira vida que se vive após a morte). Sendo a morte o
início da verdadeira vida, não é coerente ou apropriado, pois, chorar
continuamente o morto: porque derramas
tu, minha querida mãe, lágrimas vãs? Porque sofres, se não existe causa para
tanta dor? A crença na vida eterna em Deus, na verdadeira vida após a
morte, na ressurreição: que coisa
melhor, mais suave e mais santa pode, pois, ser desejada por um mortal, em
piedosos votos, do que viver uma vida superior, para sempre infinita, e
participar no bem eterno? Aqui afligem-nos constantemente tristezas prementes,
trabalho permanente e dor contínua. É uma das características que
marcam, neste texto, a forte presença dos ideais cristãos. Esta presença está,
desde logo, expressa na configuração do texto, escrito sob a forma de Visão: a
um ser vivo é mostrada, por alguém que já morreu fisicamente, um mártir, um santo,
um homem bom, a felicidade em Deus (Deus que, pelos epítetos e antonomásias por
que é nomeado, revela as características do Deus da Bíblia; ele é Deus passim, Deus aeternus, Deus ardens,
regnator, rex excelsus rerum dominusque paterque, rex uerus regnator excelsi Olympi, summus genitor, immensum
perpetuumque Deum, auetorem Deum,
omnipotens, e Dominus. A Visão é um género literário medieval, de que existem
alguns exemplos nos nossos relatos hagiológicos. Diz Clara Lucas: É de sempre o desejo humano de construir
neste mundo de lágrimas um espaço de felicidade para o qual se encaminhe o homem
justo, espécie de recompensa para todo aquele que souber encarar esta vida como
antecâmara de uma outra vida melhor.
Afonso, que vivia nos céus, entre as estrelas (passim)
e uma multidão de anjos e santos, desce à terra, por especial condescendência
de Deus: mas o excelso rei, senhor e
pai das coisas, proibiu o meu regresso aos teus tectos, até que, vencido pelas
tuas lágrimas, pela tua virtude e pela tua fé, me ordenou que viesse,
abandonando o celestial assento. Que se comovera com o sofrimento e com
a virtude da rainha (uma referencia à sua piedade e religiosidade, que a tornaram
digna de ser contemplada com a visão do filho), e revela-lhe o motivo de ser a
vida humana tão cheia de sofrimento e incerteza: é que, para se alcançar a felicidade
em Deus, isto é, o bem perpétuo e eterno, é preciso saber merecê-lo: e, como o
Criador havia de dar a este filho um bem celestial, perfeito e perpétuo, assediu-o
com mil sofrimentos e outros tantos perigos, vencidos os quais lhe daria as
recompensas devidas. E lembra-lhe, então, a quantidade de perigos, sofrimentos
e temores que afligem o homem: a presença obsidiante da morte, rodeando-o com
as suas negras asas, que o atormenta mais que a morte em si, as doenças, os
perigos súbitos, a pobreza ou o inesperado empobrecimento, a avareza, a
adversidade e a infelicidade, a fragilidade da existência, que o mais
insignificante verme pode aniquilar. E como é frágil a existência! Morre-se,
infelizmente, muito facilmente afogado durante um naufrágio, enforcado ou
trespassado por um gládio suicida, quando a adversidade é incomportável,
fulminado por um raio, e ainda por acção de água gelada bebida em hora
imprópria, de uma telhazita que ocasionalmente atingiu o alvo ou de uma grainha
de uva que impertinentemente provocou a asfixia daquele que a saboreava (diz a
tradição, veiculada por autores como Plínio, o Velho, ou Valério Máximo, que o poeta Anacreonte morreu desta
forma: digo o mesmo de Anacronte que,
ainda assim, tinha já ultrapassado o termo estabelecido para a vida humana.
Como sugasse o sumo de uma uva passa, para alimentar as fracas forças que lhe
restavam, uma grainha verde, que se alojou pertinazmente na sua garganta seca,
levou-lhe a vida.
Plínio, o
Velho, constatara também, na sua Historia
Natural, a fragilidade da vida humana, dizendo: e mesmo hoje é ainda necessário menos (para aniquilar o homem); a
mordedura de um minúsculo dente de serpente ou, como para o poeta Anacreonte, uma
grainha de uva passa, ou ainda, como para Fábio, que foi senador e pretor, um
simples pelo numa golada de leite, que lhe provocou a asfixia. Mas
muitas outras causas há de morte: os animais, dos domésticos aos vermes mais
insignificantes, provocam-na e o mesmo acontece com alguns vegetais. A fome, a
peste, a guerra, as catástrofes naturais, tudo, enfim, reclama o seu quinhão.
Até sentado se pode morrer, como aconteceu com Álvaro Portugal, apresentado como
exemplo. Mas o homem merece sofrer tantas adversidades, pelos pecados que
comete; resgatá-los-á não só após a morte, mas também, e principalmente, em
vida, no decurso da qual é constantemente assediado por aquela: mas merecemos sofrer tão grandes
adversidades por causa dos nossos pecados; todos nós somos, assim, castigados
com merecido açoite; os homens não resgatam os seus delitos apenas depois da
morte; uma inesperada punição atormenta os pecadores antes de morrer; (...);creio
que o verdadeiro perigo não é a morte em si, mas a ameaça de morte, que se nos
declara a qualquer hora». In Helena Costa Toipa, O Segundo Livro de
Visões de Cataldo Sículo, Uma introdução à sua leitura, Universidade
Católica, Centro de Viseu, Revista Humanitas, volume XLV, 1993, Universidade de
Coimbra.
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