Uma
Constelação Única
«(…)
Leonardo foi educado em casa do avô paterno, António da Vinci, onde parece
ter criado um vínculo especial com o filho mais novo de António, Francesco, que,
apesar de ser tio de Leonardo, tinha apenas mais 15 anos do que ele. Ao
contrário do ambicioso pai de Leonardo, Francesco continuou a viver no campo,
cuidando das terras e das vinhas dos Da Vinci. Podemos imaginar o jovem e
impressionável Leonardo a seguir as pegadas do tio quando este ia supervisionar
os trabalhadores na propriedade. Francesco foi quase de certeza uma das
primeiras figuras poderosas por quem Leonardo se sentiria atraído ao longo da
sua vida. Significativamente, todas estas figuras seriam homens jovens, no
início mais velhos do que Leonardo, mais tarde mais novos do que ele, mas
sobretudo na casa dos 20 anos, a idade de Francesco quando Leonardo, ainda
criança, se ligou a ele. (Por exemplo, César Bórgia tinha apenas 25 anos quando
Leonardo, já de meia-idade, o conheceu.) Francesco deve ter transmitido
grande parte da sabedoria popular do campo ao jovem sobrinho. O curso da
natureza, como é que isto aparecia, o que acontecia, o que significava aquilo,
continuaria a ser uma das preocupações constantes de Leonardo ao longo da sua
vida. Esta curiosidade pode muito bem ter sido o que o levou a começar a desenhar.
Pelo menos temporariamente, Francesco terá sido a figura paterna que faltava na
vida de Leonardo. Durante esse período, o rapaz esteve também quase sem mãe,
pois, um ano após o seu nascimento, Caterina casou-se com um soldado regressado
da guerra e, ao que parece, Leonardo terá ficado em grande parte entregue a si
próprio. Em vez de se sentir sozinho, rápido começou a descobrir as alegrias da
solidão, da qual falava mais tarde de modo apreciativo: Quando estamos sozinhos, somos inteiramente nós próprios; e, se estamos
acompanhados por uma só pessoa que seja, não somos mais do que a metade de nós próprios.
Esta solidão esteve desde o início associada à sua propensão para o desenho: Deveis dizer a vós mesmos: … sigo o meu caminho
e afasto-me dos outros, para melhor estudar a forma dos objectos naturais.
Anos depois, lembraria uma ocasião em que caminhava sozinho pelo campo: Levado pelo meu desejo impaciente e querendo
ver o sem-número de formas estranhas criadas pela natureza, e após ter vagueado
ao longo de alguma distância por entre rochedos salientes, cheguei à entrada de
uma grande caverna, frente à qual me mantive durante algum tempo, admirado,
nunca tendo visto tal coisa antes. Inclinando-me para a frente, apoiei a minha
mão cansada no joelho e levantei a mão direita acima das minhas sobrancelhas
rodeadas de rugas profundas, espreitando lá para dentro. Inclinei-me ora para
um lado, ora para outro, para ver se conseguia discernir algo do que estava lá
dentro, mas fui impedido devido à cerrada escuridão que lá havia. Depois de ter
ficado ali algum tempo, senti as emoções contraditórias do medo e do desejo a
nascerem em mim, medo da caverna escura e ameaçadora e o meu desejo de ver se
havia dentro dela alguma coisa maravilhosa.
Esta
descrição apresenta uma particularidade fascinante: podemos imaginar com
nitidez o jovem Leonardo no meio dos rochedos, inclinado sobre um joelho, a espreitar
para o que tinha diante de si no meio de uma luz solar intensa. No entanto, ao
mesmo tempo, ele introduz conscientemente elementos que fazem alusão a algo
mais: os seus desejos, os seus medos, a própria natureza da sua
individualidade. É como se Leonardo nos induzisse a ler esta passagem
de forma imaginativa, como leríamos um poema ocasional. Nestas circunstâncias,
tomamos consciência das sugestões sexuais da caverna e do medo primitivo do
desconhecido que existe latente na escuridão, assim como do desejo de descobrir
a verdade maravilhosa, desse mesmo
desconhecido. Rapidamente, é óbvio, a curiosidade sobrepôs-se aos medos de Leonardo
e ele entrou na escuridão da sua caverna metafórica para explorar os seus
segredos. Essa curiosidade inundou-lhe os sonhos, que incluíam grandes e
estranhas ambições. Mais tarde, numa das suas adivinhas, descreveria o sonho
nas seguintes palavras, repletas de experiência pessoal: Aos homens parecerá que veem destruições desconhecidas no céu. Parecer-lhes-á
que voam em direcção ao céu e, a seguir, que fogem aterrorizados das chamas que
se abatem sobre eles. Ouvirão animais de todas as espécies a falar a língua dos
humanos. Os seus corpos deslizarão num instante para várias partes do mundo sem
se mexerem. Verão os maiores esplendores no meio da escuridão. Que maravilha é
a raça humana! Que frenesim vos levou a isto? (...) Ver-vos-eis a cair
de grandes alturas sem vos magoardes. As torrentes arrastar-vos-ão e far-vos-ão
rodopiar no seu curso rápido.
(...)
É
como se estivéssemos a ver em embrião as ambições futuras de Leonardo, e, no
entanto, estes são os mesmos sonhos que todos nós vivemos. A vida de Leonardo
seria passada a tentar compreender os sonhos da própria humanidade. Ele
manteve-se profundamente em sintonia com os incitamentos da própria mente: o
seu desejo de voar, de compreender os segredos da natureza, de sobreviver a uma
torrente de água. Em vez de receber ensinamentos sobre o que fazer, sobre o
que pensar, ele sonhava com o que queria fazer, e não houve escolaridade formal
que o convencesse do contrário». In Paul Strathern, O Artista, o Filósofo e o
Guerreiro, Da Vinci, Maquiavel e Bórgia e o Mundo que eles Criaram, Clube do
Autor, Lisboa, 2009, ISBN 978-989-724-010-2.
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do CAutor/JDACT