Casamento
«(…) O dia 12 de Abril de 1498
seria sempre um dia muito, muito especial, pensou Joana, e não desejava que
mais ninguém levasse a notícia. Apressou-se pelo corredor que ligava os seus
aposentos, numa das alas do edifício, aos de Filipe, na outra. A enorme nuvem
de dor causada pela morte súbita do seu amado irmão já se dissipara e o enorme
fosso que a separava da família naquele momento de terrível sofrimento deixara
de existir. Nessa manhã recebera uma notícia mais importante. Os dois guardas
baixaram as duas alabardas que se cruzavam sobre a porta. Joana riu-se: - Acho
que o arquiduque estará em perfeita segurança. Podereis dar-me entrada? Havia algum tempo que se tornara
conhecida por descarregar a sua fúria no marido infiel e na mulher fácil que se
encontrasse, por acaso, no quarto dele no momento, batendo violentamente na
porta e proferindo injúrias mais apropriadas às ruelas de má fama do que aos ouvidos
de quem nascera nobre. Esse comportamento valera-lhe a alcunha de O Monstro. Fora Filipe o primeiro a
chamar-lhe víbora e monstro e em breve a corte flamenga adoptara o epíteto.
Joana ouvira-os muitas vezes murmurar esse nome, que a seguia para onde quer que
fosse. - Podeis abrir a porta. Mal esperou, entrando assim que pôde. - Filipe,
tenho uma grande notícia! Ele saiu do quarto de vestir, surpreendido com a sua
presença. Joana beijou-o. - Tenho um filho no meu ventre! Os médicos têm a
certeza! Ele devolveu-lhe o beijo e abraçou-a, erguendo-a no ar. - Vou ser pai. Linda Joana. Será um rapaz?
- Ainda não sabem. Têm de esperar algum tempo para ver qual dos meus seios
fica maior. Se for o direito, será um rapaz.
[…]
Enquanto Maria lhe tirava os sapatos e lhe calçava um par de coturnos,
atando-lhe os cordões de lado, Joana apertava uma carta repetidamente lida
contra o peito. - Porque haveria Deus
de o levar? - Voltou a chorar pelo irmão amado em quem confiara tantas
vezes, que a divertira com o seu humor, que estava sempre a seu lado para a
confortar e sossegar. João era a melhor pessoa deste mundo. Ter de deixá-lo
partiu-me o coração, era o meu melhor amigo. E esteve casado com Margarida durante
tão pouco tempo... Abriu a carta de Margarida e leu: ... concebi um filho! Um neto para a rainha Isabel! Ela está
felicíssima e preocupa-se muito com o meu bem-estar. Somos todos muito felizes.
E, contudo, passadas semanas sobre aquela carta, João morrera. Zayda tirou a
carta à ama para voltar a guardá-la na caixa de jóias, ralhando-lhe suavemente.
- Hoje não deveis entregar-vos à tristeza. E, acrescentou Maria, creio que o
arquiduque não gostaria de levar a sua senhora a sair com um rosto triste e os
olhos vermelhos. Temos de reparar os danos. Tendes de levar o manto verde,
aquele com o alfinete especial. Maria, acho que te transformaste numa
romântica. O alfinete de diamantes fora uma prenda de Filipe: as iniciais de
ambos lado a lado, unidas com um nó cego. Quando regressardes do vosso
passeio, podemos discutir o que haveis de vestir para a festa. Vai ser tão
divertido! Há muito tempo que não há nenhuma. Que será que Margarida de York dirá da minha boa nova?
[…]
Ela apanhou-os! Estavam presos nos braços um do outro, no alto da velha
escada de caracol que dava para os aposentos dele. - Sua meretriz, sua pu…, o
que é que ele te ofereceu para o deixares mexericar dentro do corpete? Para te
puxar as saias para cima e se te enfiar dentro de ti, aí mesmo de encontro à
parede, tal qual uma mulher da rua. Joana puxava pelo braço de Filipe,
tentando afastá-lo. - Pensas que podes esburacar tudo o que tem saias? Como te
atreves a fornicar na casa da tua mulher? Virou-se para enfrentar o rosto da
envergonhada dama de companhia. - Vai para um bordel que é lá o teu lugar. Aí
já podes abrir as pernas as vezes que quiseres e depois lavas a porcaria e
ficas pronta para o próximo que quiser enfiar a pi…, e prosseguiu com uma linguagem
cada vez mais imprópria. - Cala essa boca porca - sibilou Filipe. - Se é este o
respeito que mostrais para com a vossa esposa, preferia ir para o inferno a
ter-vos como príncipe de Castela. Sois desprezível! - E fugiu daquela cena
humilhante. - Eu é que decido o que se passa aqui!, anunciou Filipe para as
costas dela. - Vou-me embora. Quando tiverdes aprendido a controlar a vossa
língua viperina, voltarei. Ouviram-se gargalhadas e gritos de O Monstro! O Monstro regressou!» In
Linda Carlino, That Other Joana, 2007, Joana, a Louca, Editorial Presença,
Lisboa, 2009, tradução de Isabel Nunes, ISBN 978-972-23-4231-5.
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