A evolução dos complexos histórico-geográficos
«(…) Até Ceuta, teria sido, segundo L. de Azevedo, a monarquía agrária; segundo J. Cortesão,
o género de vida nacional definir-se-ia antes pelo comércio marítimo a
distância com base na agricultura. Caracterizações certamente equívocas e até
inadequadas dessa primeira época, como Sérgio tão bem provou. A monarquia era
agrária só no sentido de que os réditos do soberano, como os do clero e da
nobreza, provinham da renda da terra. O modo de vida nacional é verdadeiramente
a agricultura, e sê-lo-á ainda por longos séculos, no sentido de que a esmagadora
maioria da população activa nela se ocupa, de que o valor global da produção
agrícola ultrapassa o dos outros recursos, e de que quase toda a população dela
vive afinal; mas os vectores dinâmicos dessa econornia são a salicultura, a
indústria da pesca e o comércio marítimo que exporta para Flandres, Levante
hispânico e Maghrebe o sal, o pescado, os vinhos, o azeite, as frutas (com
que se obtêm as dobras mouriscas), os coiros, a cortiça, a grã, importando
os cereais nos anos de escassez, os têxteis flamengos e italianos, o ferro da
Biscaia, as madeiras do Norte, a prata da Europa central e oriental, as
especiarias, o açúcar. População rústica, pois como cidades contam-se tão só
Lisboa, que orçará pelos 40000 habitantes, e o Porto com uns 8000; além disso,
vilas de 1000 a 3000 habitantes. A grande circulação interna ventila-se por 64
feiras (68 em 1383), e corre, como aliás correrá durante longos séculos,
pela navegação de cabotagem, pelas barcas fluviais e pelas récuas tocadas pelos
recoveiros. Uma monarquia relativamente centralizada, capaz de leis gerais
desde o século XIII, mas cujo aparelho é constituído essencialmente pelos
ricos-homens poderosamente instalados no topo, pelos fidalgos de solar e outros
e pelos cavaleiros (sobretudo de linhagem) que partilham em hierarquia
alcaidarias e judicaturas, dispondo dos meios militares e judiciais; defronte;
um clero opulento mas politicamente posto no seu lugar, embora também partilhe
da engrenagem estadual. Seja como for, nas suas decisões essa realeza tem de
entender-se corn os riquis hominibus
mas também com mercatoribus et cum
civibus et bonis horninibus de consiliis regni mei (Lei
de 26-XII-1253), e nas cortes de Lisboa de 1371 no capítulo
I insiste-se com o rei que nom faça
guerra nem moeda sem conselho do povo, salvo
com conselho dos nossos cidadãos e naturais.
Uma sociedade organizada em senhorios e concelhos. Estes concelhos são,
na maioria dos casos, comunidades de proprietários rurais alodiais, herdadores,
quer cavaleiros-vilãos cujos bens lhes permitem ter cavalo e obrigados ao fossado,
bem perto dos escudeiros, quer peões que pagam jugada; noutros casos, comunidades
de mercadores e mesteirais. Abaixo, os malados, que não têm propriedade, logo
vivem em casa alheia, e, em pequeno número, os escravos. Desde a revolução
de 1383-5 e da tomada de Ceuta estrutura-se um outro cornplexo
histórico-geográfico. Isso resulta da regressão económica internacional e do
ambiente de crise social em toda a Europa, ligados à descida dos preços, à contracção
dos negócios, às dificuldades de mão-de-obra, instabilidade monetária, baixa
real dos réditos da nobreza. As jacqueries
e os motins urbanos de aprendizes, oficiais e pequenos mesteirais contra os
graúdos, aproveitando as divisões da nobreza e o descontentamento da alta
burguesia, levam os mercadores, mesteirais e escudeiros a aliarem-se com a arraia
miúda contra os nobres e o alto clero; assim aquela revolução vai dar uma
reconstrução mas não idêntica dos antigos quadros sociais em proveito de
burgueses e escudeiros promovendo-se a cavaleiros e nobres; a capilaridade
social aumenta, o poder passa para quadros novos, aumenta a força política das
cornunidades, os letrados tornam-se parte fundamental do pessoal público, o
Estado começa a organizar-se como burocracia; as cortes reúnem-se 27 vezes
em meio século, quando só se tinham reunido 9 no meio século precedente;
o povo miúdo passa a intervir na vida
municipal pelas Casas dos Vinte e Quatro. D. Duarte; além das três
ordens tradicionais dos oradores (clero), defensores (guerreiros),
lavradores e pescadores (os que mantêm o mundo), reconhece já
os oficiais, ou seja, a administração pública, e até os que usam de
algumas artes aprovadas e mesteres e outros, isto é, os mercadores, mesteirais,
mareantes e profissões liberaís (Leal
Conselheiro, 1438).
Em 1472 os próprios
procuradores das cidades e vilas dividem a sociedade nas seguintes categorias:
- Fidalgos;
- Cavaleiros;
- Escudeiros;
- Mercadores;
- Mesteirais;
- Lavradores e trabalhadores.
Nas Cortes de 1481-2, a classificação é ligeiramente diferente:
- Fidalgos;
- Escudeiros e gente limpa (sem dúvida oficiais e mercadores);
- Gente de ofícios mecânicos e outra de baixa mão;
- Lavradores, criadores e gente desta sorte.
Esta mesma oscilação é reveladora: fundamentalmente, temos um estrato
supremo de fidalgos e cavaleiros, depois outro de escudeiros, mercadores e
funcionários, em terceiro lugar os mesteirais, em quarto os lavradores, e
abaixo sem dúvida os serviçais e jornaleiros, e no ínfimo os escravos em
aumento». In Vitorino Magalhães Godinho, Ensaios, Sobre a História de Portugal,
Livraria Sá da Costa, Lisboa, 1ª Edição, 1968.
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