«A
avaliação que Maquiavel fez da situação aproximava-se mais da verdade do que
ele imaginava. Bórgia fazia sem dúvida bluff,
mas o que Maquiavel e Soderini não sabiam era até onde ia o bluff. O que Bórgia sabia, mas Maquiavel
e Soderini não, era que Luís XII iá tinha enviado tropas para defender
Florença. Bórgia estava consciente de que só se ele conseguisse pressionar os
florentinos a formar uma aliança consigo antes da chegada das tropas francesas
é que os seus problemas ficariam resolvidos. Os franceses continuariam seus
aliados, o número das forças ao seu dispor aumentaria consideravelmente e o seu
projecto secreto de governar um território que abrangia toda a Itália central
de costa a costa estaria mais perto da concretização. Bórgia era um homem de
considerável perfídia, ousadia e perspicácia. No entanto, a sua reputação como
temível comandante militar devia-se mais à sua capacidade de se mover com rapidez
e apanhar o inimigo de surpresa, muitas vezes por meios traiçoeiros, do que
pela valentia em combate. Por outro lado, a sua reputação noutros campos era
amplamente merecida e devia pouco ao exagero. O seu comportamento era com frequência
o de um monstro desumano, tanto nas depravações como na busca das suas enormes
ambições: nada o detinha. No entanto, era também, tal como Leonardo e
Maquiavel nos seus estilos próprios e diferentes, um magnífico exemplo do homem
do Renascimento. Carismático e belo na juventude, bastante inteligente e
versado nos clássicos, constituía uma figura soberba nas cortes de Itália e de
França quando se empenhava nisso. Era um homem que podia ser tão magnetizante
no charme como aterrorizador na maldade. Os Bórgia eram espanhóis, o que fazia
deles forasteiros entre os italianos chauvinistas. Os seus inimigos
referiam-se-lhes desdenhosamente como marranos,
nome dado aos judeus espanhóis que se tinham convertido publicamente ao
cristianismo, mas que continuavam a praticar em privado os seus cultos
religiosos judeus. Por seu lado, os Bórgia comportavam-se como se nunca
tivessem saído de Espanha, conservando a sua cultura e a proximidade familiar,
falando secretamente entre eles catalão ou valenciano. César Bórgia, que
assinaria sempre como Cesar (a
grafia espanhola do seu nome), nasceu perto de Roma, em Setembro de 1475. Era o primeiro filho ilegítimo do
cardeal Rodrigo Bórgia e da sua amante de chamativo cabelo ruivo Vannozza de
Cattanei. O cardeal Bórgia tivera outras amantes, assim como um filho e
umas quantas filhas, mas a voluntariosa Vannozza tratou de assegurar que
os seus filhos seriam os mais profundamente amados pelo pai e que se contariam
entre os principais beneficiários. Como segundo filho do cardeal Bórgia, César foi
educado desde o início para a vida eclesiástica. Ainda bastante jovem, começou
a estudar latim com o professor da casa dos Bórgia, Lorenz Beheim, um erudito
na cultura clássica e um astrólogo talentoso, que satisfazia a inclinação de
Bórgia para a superstição. Na altura em que César tinha seis anos, o pai levara
a melhor sobre o papa Sisto IV para conceder a César uma dispensa da sua condição de filho ilegítimo, permitindo-lhe assim
ocupar funções eclesiásticas. Depois disso, o cardeal Bórgia começou a obter
uma série de benefícios eclesiásticos para o filho, que ainda nem sequer tomara
as ordens sacras. Apesar disso, quando chegou aos 15 anos, César tinha
ascendido a bispo-eleito de Pamplona, capital do reino espanhol de Navarra.
(O próprio papa viu-se obrigado a
intervir para evitar uma grave sublevação dos cidadãos indignados de Pamplona, que
consideravam esta nomeação um insulto a si próprios e ao reino).
Ao
mesmo tempo, o cardeal Rodrigo Bórgia continuou a fazer a sua carreira
prosperar e, por então, tinha já ascendido à posição de vice-chanceler, o que
fazia dele uma das figuras mais poderosas de Roma. Este cargo permitiu-lhe acumular
uma fortuna, e em breve começou a viver como um príncipe do Renascimento, mais
do que como um homem do clero, decorando
o seu palácio com mobílias sumptuosas e obras de arte, tudo muito ao estilo
espanhol. Mais tarde, o cardeal, já com 60 anos, arranjaria até uma amante
adolescente, a famosa e bela aristocrata Giulia Farnese, que se casara
com um membro da poderosa família Orsini. Embora o cardeal Bórgia possa ter
levado uma vida dissoluta, fazia questão de estar sempre presente no
consistório quando os cardeais discutiam as questões da Igreja. Homem de
inteligência e astúcia, rapidamente ganhou um conhecimento de perito sobre os
negócios financeiros da Igreja e os jogos de poder envolvidos nas suas
operações. Além disso, observava de perto as tentativas de Sisto IV para
alargar o seu poder político em Itália, vendo como o papa apoiava as tentativas
fracassadas dos Pazzi para assassinar Lourenço, o Magnífico, e expulsar os Medici de Florença. O cardeal Bórgia, por
seu lado, procurava aumentar a sua influência em Espanha, adquirindo o
arcebispado de Valência e criando, mais tarde, o ducado de Gândia para o seu
filho mais velho, Pedro Luís Bórgia. Quando Pedro Luís morreu, em 1488, o cardeal Bórgia fez transferir o
título para o irmão mais novo de César, Juan Bórgia, então com 12 anos e que
era o seu segundo filho com Vannozza». In Paul Strathern, O Artista, o
Filósofo e o Guerreiro, Da Vinci, Maquiavel e Bórgia e o Mundo que eles
Criaram, Clube do Autor, Lisboa, 2009, ISBN 978-989-724-010-2.
Cortesia
do CAutor/JDACT