Dor
que enlouquece
«Fora
calmo aquele dia de Junho de 1384. O
sol sumira-se afogueado, globo enorme de ouro fulvo que deixara pelos cumes dos
montes e sobre as águas dormentes do Tejo um crepúsculo agoirento, vermelho
como a púrpura antiga dos autocratas e como o sangue forte da plebe. Em todas
as torres de Lisboa bateram lugubremente as badaladas da alvorada. Parecia que
nunca os sinos da cidade tinham tido uma voz assim dolente! Badaladas como
trágicos soluços daquele bronze que parecia ter dentro em si a alma angustiosa
da cidade. E não era deles afinal aquela tristeza imensa; era do coração de
quem os ouvia. A voz dos sinos era a mesma dos dias jubilosos; no coração dos
atormentados, dos famintos, dos que traziam consigo a dor e o luto, é que a
repercussão mudara como se viesse timbrada pelas amarguras da Pátria e pelas
tristezas de cada lar. Jesus!, soluçara uma velha a quem o marido e o filho
tinham morrido, dias antes, numa sortida às portas de Santa Catarina, contra os
castelhanos que cercavam Lisboa (o
bloqueio terrestre da cidade pelas tropas de Castela começara em 9 de
Fevereiro de 1384. O
cerco cerrara-se em 27 de Abril, depois de ter chegado ao Tejo a primeira
divisão de uma poderosa esquadra castelhana). Estão a dar aquelas
badaladas como se fosse para lembrar os tantos que a morte levou e os muitos
que hão de acabar, se o nosso Senhor não tiver dó desta pobre cidade e desta
infortunada Nação! E para maior agouro e mais doloroso contraste, as sinetas de
bordo das cinquenta e três naus e galés que El-rei de Castela tinha no Tejo
também tocaram na alvorada, mas essas numas vibrações agudas, ligeiras, como se
tivessem um timbre de riso de escárnio pela aflição da cidade. Ouviam-se bem na
trágica melodia daquele crepúsculo. A armada potente de Castela estava atracada
desde Santos até para lá de Cacilhas, muito próxima da praia, a cerrar
estreitamente o cerco. Mas do acampamento castelhano, a rodear Lisboa das
alturas de Santa Clara ao Monte da Graça e à Penha, das extremidades de
Valverde (o valezito da actual Avenida da Liberdade), daqueles hortejos
às lombas de Campolide e do monte de Santa Catarina às praias de Santos; dali
vinham ainda mais opressoras repercussões naquele anoitecer de Junho. Vinham do
estridor arrogante das trombetas no soberbo alarde das Trindades. Estão a uivar
os lobos de Castela! Má peste os ponha em fuga!, comentara um besteiro (soldado que tem a besta como arma, estando
na mesma categoria bélica que os arqueiros ou archeiros) de cabelos grisalhos.
Já pela noite dentro, as procissões de penitência cruzavam-se nas ruas, gemendo
o seu miserere, e as igrejas
atulhavam-se de gente angustiada, que fazia preces pela boa fortuna da cidade.
Para que Deus protegesse o jovem Nuno Álvares Pereira, já vencedor dos castelhanos
na batalha dos Atoleiros, e para que a nossa Senhora trouxesse
rapidamente e a salvamento a esquadra que esperavam do Porto com o socorro de
que tanto carecia a capital.
Depois
passaram silenciosas, num passo pesado e lento, de piques e bestas ao ombro, as
quadrilhas de peonagem (era todo o soldado raso de posição militar
mais baixa, apelidado de peão) de reforço para as setenta e sete
torres e trinta e oito portas que tinham as muralhas de Lisboa e para as
trincheiras de estacaria dobrada, que reforçavam as defesas até à praia de
Santos, e seguiam ao longo da Ribeira e dos Fornos da Cal até ao mosteiro de
Santa Clara. Para os lados das Portas de Santa Catarina e da Torre de Álvaro
Pais (na moderna rua de S. Roque), trotava um grupo de cavaleiros, de bacinetes
emplumados, cotas e braçais. Iam para onde o perigo era maior e mais frequentes
as escaramuças com os sitiantes. Depois o soluçar das preces emudeceu, as velas
dos altares apagaram-se, as grandes portas das igrejas cerraram-se. Esmoreciam
pelas esquinas e sobre as portas de casas abastadas os lampiões e as candeias
dos nichos, à míngua de umas gotas de azeite, porque até nisto se manifestava a
miséria daquela encantadora Lisboa, à qual os mouros tinham chamado a Sultana do Mar Azul do Ocidente. Foi
correndo a noite e a cidade parecia adormecida num sono de pesadelos. Mas nem
toda ela adormecera. Nas muralhas velavam as atalaias, e dos lados da Ribeira
vinha, a espaços, um rumor brando de vozes. Mas nos lares que a morte enlutara
de lágrimas de dor, nos castelos miseráveis, quantos esquálidos havia, que não
conseguiam dormir por causa da sua
horrorosa tortura de famintos?
No
recanto de uma travessa, um grupo de esfarrapados esquartejava sofregamente uma
mula escanzelada para o seu banquete daquela noite. Havia dois dias que não
traziam na sacola nem uma côdea bolorenta de esmola, uma côdea daquele pão
miserável que então se fazia na cidade com o bagaço da azeitona, as raízes das
ervas e as malvas dos quintalejos abandonados. No terreiro, onde ainda um mês
antes se vendiam uns restos de trigo, bandos de crianças semi-nuas, estonteadas
de sono e roídas de fome, andavam a arranhar o chão para ver se a terra tinha
escondida em si a fartura de alguns bagos de trigo. Eram mais bem sucedidos que
as pobres crianças, os cães sem dono, a focinhar nas montureiras, que
trescalavam podridões de cadáveres. Em frente da Sé, as torres castelãs,
envoltas num manto de sombra como figuras gigantescas de alguma lenda, uma
mulher nova, de cabelos esparsos, uma farrapagem de brocados a cingir-lhe o
corpo, que era talvez belo, parara arquejante, aconchegando muito aos seios um
vulto pequenino de criança, num choro convulsivo e débil. Como tu choras, amor da minha alma! Cheia de
fome! Eu sei! Eu sei! Filha, dava-te o meu sangue, e não posso matar-te a fome!
Murmurara-lhe isto num estrangulamento
de soluços como se a pequenina a pudesse compreender, e apertava-a mais contra
o peito como se quisesse que do seu seio ressequido aquela boquita lhe pudesse
beber o sangue. Lavada em lágrimas! Têm mais sorte os que morrem! Que tamanha
misericórdia seria se a nossa Senhora nos levasse a ambas para si! E a
pequenita num choro cada vez mais convulso, mais rouco, mais dolorido. Num
relancear dos seus olhos de alucinada, turvos de lágrimas, a desventurada
mulher deu com um painel da Senhora Mãe de Deus, que o padre Cabido mandara
erguer por cima da porta do templo, desde que as misérias do cerco tinham posto
a cidade em maiores desalentos». In António Campos Júnior, A Ala dos
Namorados, 1905, Luso Livros, Uma nova forma de ler, Formato digital, 2013.
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