Ninguém
sabe mentir tão elegantemente como a rainha (1775-1780
«Tiveram
de passar alguns anos desde o seu casamento até que Maria Luísa Parma ficasse
grávida do marido pela primeira vez. O príncipe Carlos, primogénito do rei de
Espanha, era um rapaz algo apagado, alto
e deselegante, de olhar sorridente, loiro, de olhos azuis, muito piedoso, muito
simples, o qual, desde muito cedo, começou a sofrer a influência da sua
jovem e bela mulher ao ponto de se sentir intimidado por ela. Os retratos que
Anton Mengs pintou de ambos pouco depois de casados mostram claramente a
diferença e complementaridade do carácter do príncipe com o da sua consorte. O
pintor da corte soube transmitir com mestria a personalidade já formada da jovem
Maria Luísa, uma princesa alta,
erguida, de aspecto muito airoso... olhos escuros e um olhar que, quando ela
quer, é risonho, segundo a acertada descrição de um biógrafo. Uma italiana
que sabia mentir com uma elegância insuperável, segundo a definição ainda mais
precisa de um inteligente diplomata que conviveu com a futura mãe de Carlota
Joaquina. Sobre a suposta credulidade do seu marido para confiar em tudo o
que dizia a mulher, circulava então uma anedota que, embora não seja
verdadeira, serve para saber o que pensavam dele e como se expressava a corte
de onde surgiu. Segundo parece, pouco antes de se casar, quando o pai lhe
perguntou que tipo de esposa preferia, respondeu que aceitaria qualquer uma,
desde que fosse uma princesa, pois estas não podiam enganar os maridos como as
comuns mortais. Ao que o rei Carlos III de Espanha terá respondido com uma
grande gargalhada, dizendo ao filho que estava muito enganado, pois as
princesas podiam ser tão pu… como as outras mulheres.
Em
todo o caso, é certo que o príncipe encontrava na consorte, muito segura de si,
um meio cómodo e eficaz para levar a cabo determinadas acções que ele, dada a
sua timidez natural, tinha mais dificuldade em executar, com a vantagem
adicional de não ter de se expor na primeira pessoa. Será esta aparente falta de carácter, do pai que ficará na
mente da pequena Carlota ao deixar a corte espanhola numa idade ainda muito
jovem para compreender o poder que podem por vezes desenvolver os tímidos, a
primeira e principal causa da sua incompreensão perante o infante João, cujo
temperamento, em alguns aspectos, era muito parecido com o dele. Na altura em
que Carlota Joaquina veio ao mundo, a corte espanhola tinha ainda um
certo carácter itinerante. Depois de passar o Verão em La Granja, um refinado
edifício do século XVIII de estilo francês perto de Segóvia, o rei mudava-se
para o imponente mas austero palácio-mosteiro do Escorial, o qual deixava pouco
antes das festas natalícias, para as celebrar em Madrid. Daí, ia até ao palácio
de El Pardo, relativamente próximo da capital, cujos frondosos bosques eram
muito frequentados por Carlos III para praticar a caça. Este terceiro Borbón
espanhol respeitava muito os preceitos da Igreja em matéria de moral sexual,
pelo que, falecida a sua mulher e seguindo o conselho dos seus confessores,
desafogava as suas paixões da carne praticando a actividade cinegética.
Para
as festas da Páscoa, a família real regressava a Madrid, que abandonava uma vez
terminadas as celebrações religiosas, para se dirigir, para passar a Primavera,
ao palácio de Aranjuez, uma airosa construção de pedra branca rodeada de
jardins nas margens do Tejo. Ao engravidar pela segunda vez em dez anos, pouco
depois da morte do seu primeiro filho, Maria Luísa começou a temer que
estas constantes viagens pudessem afectar a sua gravidez, e é provável que tenha
pedido ao rei para não acompanhar a corte. Há algumas dúvidas em relação ao
local onde a princesa terá dado à luz a futura rainha de Portugal. A maior
parte das crónicas espanholas, seguidas pelos historiadores portugueses,
assegura que o nascimento de dona Carlota ocorreu no Real Sítio de Aranjuez,
naquela altura a uma distância de cerca de cinco horas de Madrid, a 25 de
Abril de 1775. No entanto, uma
obra especializada nos partos das rainhas de Espanha, em outros casos muito fiável,
afirma que a segunda gestação [de sua
mãe] terminou em El Pardo... com o nascimento de uma menina; a infanta Carlota
Joaquina. Segundo esta mesma fonte, a infanta começou a ser criada por Josefa Castaños, mas aos quinze dias sentiu-se
indisposta e teve de ser substituída por Eugenia Funes. O facto de esta
obra mencionar o nome de duas amas de dona Carlota, aspecto que não
surge em nenhuma outra que aborde este tema, assim como o pormenor da
substituição da primeira ama pela segunda, dá ainda mais credibilidade a esta
versão.
Em
todo o caso, embora tenha nascido em El Pardo, este local não deixava de ter
certas conotações nefastas em relação a uma infanta espanhola que acabaria
rainha de Portugal, semelhantes às que se podiam encontrar no palácio de
Aranjuez, onde quase todas as restantes obras dizem que ela nasceu, e onde
tinha ocorrido a morte por cancro do útero da infanta Bárbara de Bragança,
rainha de Espanha, cuja falta de filhos tinha significado uma grande
desvantagem para Portugal. Quanto àquele, foi nos seus sombrios bosques que
encontrou refúgio, nos finais do século XV, o rei Henrique IV de Castela, marido
da infanta dona Joana de Portugal, irmã de Afonso V, e mãe da infeliz
Excelente
Senhora. Ali se refugiou o rei depois de a rainha ter sido presa pelo
crime de lesa-majestade por ter tido filhos com um amante, outro gravíssimo
dano para a coroa portuguesa, pois isso fez com que a filha legítima da rainha
a perdesse». In Marsilio Cassotti, Carlota Joaquina, O Pecado Espanhol, tradução de
João Boléo, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2009, ISBN 978-989-626-170-2.
Cortesia
EdosLivros/JDACT