«… Concerne esta alegada
multiplicidade não apenas a possibilidade de identificar as coordenadas
estéticas por que se norteia a produção literária de João Aguiar, os caminhos
da História e das Estórias. Diz outrossim respeito ao modo como, no grupo dos
romances de temática histórica, o autor entretece dados históricos com
elementos ficcionais; e como, nas narrativas de ficção, a sua capacidade
imaginativa, aparece, por vezes, travestida por cores fantásticas, feéricas (O Homem Sem Nome); por
laivos de realidade vivida ou sabida por outrem (O Canto dos Fantasmas); por características das
narrativas policiais (Os Comedores de
Pérolas); ou ainda ancorada no folclore popular e na
realidade portuguesa (A
Encomendação das Almas e Navegador Solitário). Da intromissão de elementos
ficcionais na tessitura narrativa de carácter histórico, dá-nos João Aguiar
conta na Advertência Prévia ao primeiro dos seus romances - A Voz dos Deuses,
e igualmente válida, lato sensu,
para os romances A Hora de Sertório e O Trono do Altíssimo: Boa,
má ou simplesmente medíocre, A Voz dos Deuses é uma obra de ficção e não
um ensaio histórico rigoroso. No entanto, estou sinceramente persuadido de que
o Viriato que os leitores encontrarão nestas páginas está mais próximo do
Viriato histórico e verdadeiro que a tradicional imagem do rude pastor dos
Hermínios bravamente entrincheirado na sua cava, em Viseu; mesmo porque Viriato
não nasceu nos Hermínios (...) a Cava é uma fortificação que nada tem a
ver com o chefe lusitano. Entretanto, e parafraseando Eça de Queirós (...), foi
necessário lançar sobre a nudez forte de uma verdade histórica insuficiente o
manto diáfano de uma fantasia plausível ou, pelo menos, aceitável.(...)
É, pois, de acordo com este jogo
entre História e ficção, cujas regras tacitamente se acordam com o leitor, que
João Aguiar recua aos mais remotos tempos de Viriato, de Sertório e de
Prisciliano. Destes, e da época era que se movimentam, aproveita, por um lado,
alguns aspectos históricos, oficialmente tornados verdadeiros por todos os que,
em diferentes espaços e tempos, foram investidos do poder de fazer crónica do
passado. Por outro, o que o autor leva a cabo mais não é do que a consecução da
noção Ingardiana de preenchimento de pontos de indeterminação provocados,
e permitidos, pela pretensa objectividade dos relatos históricos ortodoxamente
científicos, deste modo construindo verdades internas da ficção, tão didácticas
e úteis como as verdades oficiais. O que John Woods designa por modalidades
mistas de existência ocorre em A Voz
dos Deuses, A Hora de Sertório e O Trono do Altíssimo, não apenas
pela convivência no universo narrado de personagens, acontecimentos e lugares
aceites como históricos, com personagens, acontecimentos e espaços ficcionais,
mas também, e essencialmente, pelo facto de em cada uma dessas categorias
coexistirem as duas linhas de força: a histórica e a ficcional.
Desta feita, por exemplo,
coexistem em A Voz dos Deuses personagens, acontecimentos, tradições e
modos de vida reais, Viriato, Sérvio Galba (governador da província Ulterior),
Lúculo (governador da Citerior), Caio
Vetílio, responsável pela corrupção de Audax, Ditalco e Minuro, assassinos do
chefe lusitano, com personagens e acontecimentos fictícios, mas não
inverosímeis, caso de Tongio, companheiro de Viriato e futuro sacerdote do
templo de Endovélico; caso dos oráculos de Baikor e da Serra da Lua, cuja
descrição, entre muitas outras, activa esquemas cognitivos conformes ao que o
leitor julga ter sido o estado das coisas da época em causa. Cite-se, a título
de ilustração, e no que diz respeito ao mundo das crenças, uma breve passagem
alusiva à profecia da Serra da Lua: Relanceei
um olhar alarmado à nossa volta e nesse instante ouvi uma espécie de silvo,
como se fosse uma cobra, e logo a seguir a voz soou de novo, e saía da boca de Arduno,
mas não era ele que falava nem era a sua voz; parecia a de uma mulher, embora o
som fosse grave e a articulação dura e enérgica. - Tongio, filho de Tongétamo. Porque
fazes perguntas sobre o destino se os deuses já te disseram o que podias ouvir?
À vossa frente o caminho é longo. Há vitórias e derrotas, alegria e sangue,
traição e glória. A águia está ferida mas este é o tempo do seu domínio. Depois
do Touro virá a Corça. Porque fazes perguntas? Ε tempo de combater. Só
tu verás a era da Corça. Mas os deuses querem-te, os deuses surgirão no teu
caminho...
Depois do Touro virá a Corça...
Depois de Viriato é A Hora de Sertório, é altura de encerrar o díptico,
compondo, dez anos depois, as voltas ao mote dado pela profecia, numa narração
a três vozes dos valores e das crises sociais, económicas e políticas do mundo
romano do século I a.C.. A polifonia narrativa deixa de ser protagonizada pela
voz dos deuses, até porque Os deuses
calaram-se no céu e na terra, e passa a ser entabulada entre Euménio de
Rodes, Lúcio Hirtuleio e Medamo. Narradores do trajecto pessoal e político de
Quinto Sertório, estes são simultaneamente personagens, protagonistas por
vezes, de pequenos quadros a partir dos quais é possível conhecer diversos
aspectos da vida coetânea: cenários, usos e costumes da vida doméstica,
cultural, social e política. Conhecemos e sabemos o que eles conhecem,
sabem e testemunham; informações que, apesar de limitadas e parciais, validam
os relatos feitos, porquanto estes se crêem tanto mais verídicos e credíveis
quanto tiverem sido de facto vividos pela entidade que preside à narrativa.
Além disso, aduza-se ao exposto que a mencionada limitação, de certo modo
inerente aos narradores homodiegéticos, é colmatada pelo facto de cada voz ir
progressivamente preenchendo vazios, momentos da narrativa deixados em aberto
pela voz anterior». Ana Paula Arnaut, A Ficção de João Aguiar, A alquimia de uma escrita
múltipla, Comunicação apresentada em Janeiro de 1997, Esrudos Clássicos da FLU
de Coimbra, revista HVMANITAS-
Vol. XLIX (1997), ISSN 2183-1718.
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