Jamais houve homem menos
maquiavélico do que Maquiavel. In Villari
Maquiavel, o prisioneiro do maquiavelismo
«(…) Ciente da impossibilidade de abarcar esta labiríntica literatura, em
que já florescem estudos sobre os estudos maquiavelistas, coube-me, por gentileza
do editor, o pesado encargo de escrever umas linhas de apresentação de O
Príncipe. Ao fazê-lo, tive de convencer-me de duas coisas. Primeira,
eue Niccolò Machiavelli não é coutada privativa de historiadores ou de cientistas políticos, que são a grande
multidão que dele se ocupa, pois a multiplicidade do seu ser e o polimorfismo
do seu pensamento tornam-no um espelho da própria vida. Há uma frase de
Giovanni Papini que resume tudo: acusar Maquiavel é acusar o próprio espelho,
o mesmo é dizer, nele está a totalidade de todos nós e cada um em alguma
particularidade do seu ser. Segunda, que, tendo sido dito tanto e,
sobretudo, tanto contra Maquiavel, era tempo de lê-lo e ousar dizer,
como se pela primeira vez: a cada um o
seu Maquiavel, pois todo o homem é livre de se rever no Maquiavel que haja em
si e nos outros que o cercam, sendo a vida o combate com o demónio que possui o
irrequietismo de cada criatura. Devo ao acaso da leirura de um pequeno
texto, de Henrique Barrilaro Ruas (cito o
seu pequeno artigo sobre maquiavelismo publicado na Enciclopédia Verbo
Luso-Brasileira de Cultura, volume 18, 1999; nele, Ruas resume o seu pensamento
quanto à distinção que julga dever ser feita também em relação a Karl Marx
entre o teorético e o doutrinário; Maquiavel foi vítima de uma cilada que
ele próprio montou; já Veríssimo Serrão anotara, ao prefaciar a obra de
Martim Albuquerque, Foi voga desde o século XVI citar Nicolau Maquiavel e
abusar do seu nome e mensagem para explicar situações que nada têm de
maquiavelismo. As correntes ideológicas levaram à deficiente aplicação desse
conceito, criando uma perigosa vizinhança com interpretações que não promanam
da fonte autêntica de Maquiavel), ter-me sido possível levar os olhos um
pouco mais alto do que a vulgaridade com que entendia a obra que agora apresento
e ter sido capaz de compreender a
necessidade ou conveniência científica de distinguir e destacar o maquiavelista
[...] do maquiavélico. Foi por aí que comecei o meu estudo.
Sem isso seria mais um que faria à obra a injustiça de tomar partido.
Como Maquiavel põe na boca de Calímaco, na sua notável peça de teatro La Mandragola: uma coisa gera outra e o tempo gera todas.
No momento em que escrevo sinto o conforto de saber que muito se evoluiu na
percepção e na avaliação deste controverso autor e haver assim espaço para
outras visões pessoais que não tenham de se inserir nas trincheiras onde se tem
travado o combate ideológico em torno da interpretação e aplicação de O
Príncipe. O aprofundado conhecimento da integralidade da sua obra, não
apenas dos escritos políticos, mas os do comediógrafo, do poeta, do simples
escritor de cartas, a contextualização da mesma na época do Renascimento que a
ditou, e tudo quanto tal significa de ruptura com a visão teocêntrica da vida e
do homem, a ponderação da situação política que lhe foi dado viver, a ânsia da
unificação de uma Itália pulverizada, traumatizada por sonhos de glória passada,
enfim, um levantamento biográfico exaustivo sobre a triste misantropia e a gaia
ironia da sua conturbada vida, tudo isso permite uma nova visão, mais
abrangente e, sobretudo, mais enriquecedora porque mais realista. Há hoje, no
fluir contínuo do pensamento e do sentir, que são a fonte da inteligibilidade
de todas as coisas, ao lado de um revisionismo salvador do pior que se retirou
de maquiavélico do maquiavelismo, parte do processo histórico de
branqueamento dos horrores da História e da malignidade filosófica, um esforço
bravo de libertar a filosofia da ideologia, o pensamento dos preconceitos,
compreender sobretudo o que ditou a perenidade multissecular deste pequeno livro.
Como disse, vibrante, Jorge de Sena, num estudo vindo a público
em 1963, do que se trata ao estudar
Maquiavel é da condenação das hipocrisias
dos moralismos e dos legalismos, simultaneamente com o amoralismo total, as
grandezas e misérias do poder político, em suma, a baixeza moral dos que traduziram em falta de dignidade o pensamento
daquele que teve a coragem de colocar
a política no plano de uma filosofia de acção, independentemente dos ditames e
da autoridade de qualquer poder constituído, religioso ou não». In
Nicolau Maquiavel, O Príncipe, Introdução de José António Barreiros, tradução a
partir do original de Maria Jorge Figueiredo, Editorial Presença, Lisboa, 2008,
ISBN 978-972-23-3951-3.
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