A História é Geográfica
«(…) Não é demasiado
difícil discernir as origens desta tripartição. A ideologia centrista liberal,
que, nessa época, estava em vias de dominar a geocultura, insistia em que a
qualidade mais fundamental da modernidade e, portanto, do progresso científico,
era a diferenciação das arenas da acção social em três: o mercado, o
Estado e a sociedade civil. Era-se moderno na medida em que estes
três domínios erigissem muros uns contra os outros. E, ao mesmo tempo,
construía-se a modernidade construindo esses muros. Cada domínio, dizia-se, tem
as suas regras distintas. Cada domínio é logicamente independente do outro.
Cada domínio deveria, pois, abster-se de interferir com os outros. E, em
consequência, torna-se evidente que os investigadores e as estruturas do saber
devem vigiar atentamente para que as características de cada um desses domínios
não sejam invadidas nem corrompidas pelo outro. E eis-nos chegados às verdades
universitárias actuais contra as quais se insurgiam os Annales,
se insurgia Vitorino Magalhães Godinho, para proclamar a unicidade da
história. E se a história vivida é única, unificada, chegamos logicamente à
interciência, à conclusão de que as ciências sociais são necessariamente
históricas e que a história necessariamente se define como ciência social.
Donde, logicamente, organizacionalmente, deveríamos ter baseado as nossas
chamadas disciplinas numa disciplina única, a que, por mim, chamaria ciências
sociais históricas ou historizadas. Magalhães Godinho indica-nos este caminho
ao longo de todas as suas discussões sobre a
crise da história. Ouçam a sua argumentação:
- Ao longo do Cinquecento, as economias não caminharam todas ao mesmo ritmo […] a desgraça de uns era a boa fortuna dos outros […]. Que tais desequilíbrios sejam muitas vezes de origem extra-económica, no sentido estrito ou, melhor, académico que a economia pura dá a este adjectivo, muito bem. Está por fazer, começa a fazer-se, uma teoria do técnico, as inovações estão à cabeça da teoria económica de Schumpeter. Está por fazer a psicologia histórica, quem está a servir de parteiro é Lucien Febvre. Mas a necessidade de teorização impõe-se em todos os domínios e no conjunto dos domínios como um todo. A história não pode deixar de continuar a absorver mais teoria. Mas tem de entender-se o real e, portanto, as suas transformações, o devir; a única forma de, por sua vez, o conseguir é através da historização das teorias, da tecnologia, da psicologia, da sociologia e, porque não, da própria economia. (Godinho, 1971).
Este programa, enunciado
em 1951, não foi ainda realizado
pela grande maioria dos analistas mundiais. Sem dúvida que, aqui e ali, houve muitos
esforços mas, mesmo se admirados, eles não são amplamente seguidos.
O passado relativiza-se no presente
«Há todo um mundo a desbravar,
desde que quem estude o passado não esqueça o presente e saiba sacrificar ao
espírito crítico quer os interesses apaixonados que tudo deturpam porque
demasiado exclusivos, quer o cómodo abandono de selecção que nada permite explicar
porque tudo confunde». (GODINHO, 1971)
Entre todos os temas,
considero este o mais importante e o mais radical. As guerras culturais que
irrompem quando se utiliza o verbo relativizar! E que afronta à suposta
distância imparcial do historiador quando se insiste no facto de que a história
é, de facto, uma descrição do presente e não o texto de um passado à moda de
Ranke, o passado tal como era realmente. O presente, como se sabe, é o mais
evanescente dos fenómenos, terminado antes que possa captar-se». In Immanuel Wallerstein, A descoberta da economia-mundo,
Comunicação ao colóquio Le Portugal et le Monde: Lectures de l’Oeuvre de
Vitorino Magalhães Godinho, Paris, 2003, Revista
Crítica de Ciências Sociais, nº 69, 2004.
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