«(…) Não tardou a conhecer na perfeição todas as salas pelos
respectivos sons: diferenciava o andar dos familiares, o rangido da cadeira com
o tio aleijado sentado nela, a fricção seca e rítmica da linha nas mãos da mãe,
o tiquetaque monótono do relógio de parede. Às vezes, gatinhando ao longo da
parede, escutava atentamente um barulhinho ligeiro, inaudível para os outros,
levantava a mão e estendia-a para uma mosca que andava pelo papel da parede. O
insecto assustado levantava voo e desaparecia e, na cara do cego, surgia uma
expressão de doentia perplexidade. Era incapaz de se dar conta do misterioso
desaparecimento da mosca. Contudo, posteriormente, nos mesmos casos, o seu
rosto mantinha a expressão de uma atenção consciente: virava a cabeça na
direcção em que a mosca estava a voar, o seu ouvido requintado apanhava no
ar o fino ressoar das suas asas.
O mundo que brilhava, que se movia e que soava à sua volta penetrava na
cabecinha do cego principalmente em forma de sons, e as suas percepções tomavam
essas formas. Na sua cara fixava-se uma atenção especial para os sons: o
maxilar esticava-se-lhe ligeiramente por cima do fino pescoço. O sobrolho
começava a mexer-se, enquanto os olhos belos mas imóveis comunicavam ao rosto
do cego uma expressão severa e, ao mesmo tempo, comovente.
O terceiro Inverno da sua vida estava a terminar. Na sua a neve já
derretia, os riachos primaveris tilintavam e a saúde do menino, que passara o
Inverno quase sempre adoentado, sem sair para o ar livre, começou a melhorar.
Foram tiradas as vidraças complementares das janelas e a Primavera irrompeu no
quarto com o dobro da força. O risonho sol primaveril batia nas janelas
banhadas em luz, os ramos ainda nus das faias baloiçavam, ao longe negrejavam
os campos com umas manchas de neve a derreter aqui e ali e, noutros sítios, com
ervas jovens, por ora quase indistintas. Toda a gente respirava com mais liberdade
e prazer a toda a gente a Primavera trazia forças e energia renovadas.
Para o miúdo cego, ela irrompia no quarto apenas com o seu apressado
barulho. Ouvia como as correntes das águas primaveris fluíam, como se quisessem
ultrapassar-se umas às outras, saltando nas pedras, enfiando-se dentro da terra
amolecida; os ramos das faias cochichavam atrás das janelas, colidindo entre si
e tilintando ao tocar ligeiramente nos vidros. O célere gotejar primaveril dos
sincelos que pendiam do telhado, endurecidos pelo frio matinal e, agora,
aquecidos pelo sol, tamborilava com milhares de toques timbrados. Estes sons
caíam no quarto como pedrinhas brilhantes e sonoras, executando uma rápida e
vibrante percussão. De vez em quando, através desses tinidos e barulhos, fluíam
das infinitas alturas os chamamentos dos grous, silenciando-se pouco a pouco,
como que derretidos lentamente no ar. Na cara do menino esta animação da natureza
repercutia-se numa doentia perplexidade. Carregava tensamente o sobrolho,
esticava o pescoço, escutava e depois, como que alarmado pela incompreensível
azáfama dos sons, estendia de repente as mãos, procurando a mãe, e precipitava-se
para ela, apertando-se contra o seu peito». In Vladimir Korolenko, O Músico
Cego, Arbor Litterae, 2010, ISBN 978-989-8292-30-8.
In Memoriam dos amigos dona M. do
Nascimento e Teodoro. Sr D… deixe-me um espaço na garagem por causa do meu
Volvo castanho…
Cortesia de Arbor Litterae/JDACT