«Como o mal apareceu no mundo? Um deus bom não pode desejar
o mal, não pode criar condições para que ele se manifeste; logo, ao
lado de um princípio eternamente Bom, existe um princípio eternamente Mau.
O pensamento dualista surgiu como resposta satisfatória a este questionamento.
No princípio do cristianismo, o problema do mal agitava as comunidades
religiosas orientais. Entretanto, no primeiro século da nossa era, o pensamento
dualista, que se manifestava através de heresias, não era condenado. Heresia significava um acto de
escolha dentro de princípios filosóficos, filiados a uma escola, seita ou
doutrina. Foi entre os séculos II e IV, quando a Igreja determinou os cânones
do Novo Testamento, o credo apostólico e se tornou uma instituição
eclesiástica, que as heresias foram marginalizadas. Dogmas e doutrinas que
elas defendiam, quando comparados aos da ortodoxia, adquiriram sentido contrário
ao que foi definido pela Igreja Católica em matéria de fé. Heresias e
hereges passaram a ser perseguidos. Em estado latente, elas e eles se
mantiveram. Por volta do ano 1000, o problema do mal voltou a atormentar o
homem. O retorno das heresias tornou-se um facto europeu. O que hoje
denominamos catarismo apareceu
na França, no século XI, possivelmente trazido da Bulgária. O catarismo
instalou-se também na Catalunha, na Itália, na Alemanha, na Inglaterra, mas foi
no sul da França que tomou forma de religião, organizando-se como Igreja,
como civilização original. Foi ainda no sul da França que ele contou com a
conivência dos senhores feudais e exerceu influência social e política sobre a
região, modificando o pensamento e os hábitos quotidianos dos sulistas. Em meio
a tantas cruzadas, tantas mortes em nome de Cristo, a Cruzada
Albigense, empreendida contra
cristãos e não contra infiéis, foi a que obteve maior êxito e consequências
importantes. Após a expedição de 1226,
o papa Gregório IX instaurou o primeiro sistema de controle ideológico, feito através
de denúncias, delação institucionalizada, interrogatórios e constituição de
fichas de informação. A Inquisição (maldita), comandada pelos frades pregadores,
deu nascimento a uma ferramenta que seria privilegiada por todos os
totalitarismos futuros, por todas as ditaduras vindouras. Anos depois, o
Languedoc (região onde se desenvolveu a heresia) foi anexado à coroa da França,
facto de importância capital para a constituição da França actual, porque abriu
para o reino as portas do Mediterrâneo.
O Conflito
Em meados do século XI, a grande
preocupação da Igreja era o retorno das heresias, que contaminavam os fiéis e
os afastavam da ortodoxia de Roma. A mais perniciosa era a difundida entre tecelões. Bispos e arcebispos reagiam.
Faziam pregações, reuniam-se em concílios, estabeleciam cânones proibindo
feudatários e povo, sob pena de excomunhão (a excomunhão decretava a morte
civil de um feudatário; excomungado, o feudatário perdia serviço militar, ajuda
e conselho de parentes, amigos e vassalos; a interdição paralisava a vida
religiosa da cidade; impedia o povo de receber sacramentos que eram de extrema importância
para o homem medieval) e interdição, de dar asilo e protecção a infiéis ou
manter quaisquer relações com eles, mas as ameaças não impediram o desenvolvimento
da heresia nem o convívio com hereges. Ao contrário, no início do século XII,
ela ganhava seguidores por toda parte. Foi para divulgá-la que, em 1116, o monge Henrique Lausanne
chegou a Mans. O bispo da cidade acolheu-o sem questionamentos. Olhos voltados
para uma viagem a Roma, mal informado sobre o conteúdo da doutrina que seria
exposta e defendida pelo monge, o bispo lhe deu permissão para falar ao povo.
Ele partiu, e quando voltou à cidade fervilhava. De um lado, o povo,
entusiasmado, escutava atentamente as ideias trazidas por Henrique; de outro,
as autoridades religiosas locais escandalizavam-se com o teor de seus calorosos
discursos. Proibido de pregar, ele não se acobardou e, para espanto da
comunidade eclesiástica, não se calou. Os fiéis, encantados com a heresia,
garantiam-lhe autoridade e amparo. O bispo conseguiu rechaçá-lo de seus domínios.
Henrique refugiou-se em várias cidades, aliciou inúmeros seguidores, mas onde
pregava era escorraçado. Tanto teimou, que foi intimado a se retratar em
concílio. Desculpou-se, compungido. Depois, esqueceu promessas e, indiferente a
ameaças, reproduziu as antigas crenças. Fuga... Expulsão... Fuga... Expulsão...
Vinte anos depois, Henrique
Lausanne abancou-se em Toulouse. Granjeou inúmeros adeptos. Suas palavras resvalaram
para cidades vizinhas, e muitos se converteram à heresia. Afonso Jordão, conde
de Toulouse, não fora ensinado a tolher ideologias, fossem elas filosóficas,
éticas ou religiosas. Estava habituado à diversidade de pensamento, advogava tolerância.
Para o conde, nada mais natural que cada um professasse a religião de sua
escolha. O renascimento de heresias dualistas era um facto europeu. Desde o ano
1000, após alguns séculos de
latência, elas haviam sido reactivadas e, se no início do cristianismo
alvoroçaram o Oriente, mil anos depois agitavam o Ocidente, trazidas dos Balcãs
e do norte da Itália. Não seria ele quem as reprimiria, menos ainda os católicos
da cidade. O motivo? Como perseguir amigos e parentes que
cresceram juntos, foram educados nos mesmos moldes de respeito às diferentes
maneiras de pensar? Os hereges viviam honradamente, como verdadeiros
cristãos. Sustentavam-se através do trabalho de suas mãos, exerciam a pobreza
pessoal em nítida vontade de restaurar a pureza dos ensinamentos de Cristo. A
heresia preconizava um retorno ao evangelismo primitivo, aquele defendido pelo
Salvador e seus apóstolos, e que a Igreja Católica esquecera, tão preocupada se
encontrava com hierarquia e bens alcançados». In Maria Nazareth Alvim Barros, A
História Secreta dos Cátaros, Deus reconhecerá os Seus, Editora Rocco, 2007,
ISBN 978-853-252-162-0.
Cortesia
de Rocco/JDACT