A
Última Olímpica
«(…)
Por pequena que seja, a aldeia não se espanta de ser atravessada por um
autocarro de turismo ou de ser visitada por um avião, ou ainda, se se gaba de
ter uma pequena enseada aberta ao mar, de ser acostada por algum iate vindo do
estrangeiro, tal como Atenas tão-pouco fica surpreendida, pelas belas noites de
Verão, de se ver atravessada por um rebanho de cabras transumantes, trocando a
erva seca do Pentético pela erva seca do Parões. E os últimos noctâmbulos, sentados à mesa do terraço do café, nem
sequer viram a cabeça; e os viajantes internacionais, deitados nas suas camas
de hotel, ouvem batidos nos seus sonhos. O contraste, tradicional no nosso
país, entre o aldeão e o citadino, está aqui despojado de sentido: o opulento armador
e o chefe da aldeia, que veio tratar de algum assunto a Atenas, não
contrastarão quando sentados à mesa do mesmo cafezinho na proximidade do
Parténon; saborearão o mesmo líquido negro; beberricarão pelos mesmos copos de
água e atirarão o resto à poeira numa libação inconsciente à frescura;
estenderão ao mesmo garoto engraxador os sapatos, cedo reluzentes de brilho puxado
com igual cuidado. Esta zona aldeã onde seca, em monte, a uva de Corinto, tem a
sua taberna onde jovens elegantes de casaco coçado e senhores idosos de fato
escuro, eternas personagens de coro grego, comentam as notícias do mundo e a do
distrito no mesmo tom rápido e desprendido que os clientes dos cafés
atenienses. Ainda como no teatro e para lembrar que a costa, os oliveirais ou
as encostas ervosas das colinas estão muito perto, mensageiros do mar e dos campos
passam de tempos a tempos sob os plátanos: a pastora levando debaixo da
comprida blusa o cordeiro nascido na véspera, o burrinho embranquecido pela
poeira dos caminhos, ou o jovem pescador um pouco atarantado, imóvel como um
bronze antigo, plantado na praça da aldeia, de braço erguido e segurando
delicadamente pelos ouvidos um enorme peixe azul:
Cartas
de Gobineau a duas atenienses
Uma
Atenas ainda provinciana apesar da sua recente categoria de capital, regida por
uma monarquia de origem dinamarquesa; uma casa espaçosa com um rododendro; duas
jovens de crinolina, de cabelos só há pouco tempo penteados para cima, estudam
conscienciosamente piano e francês sob o olhar de uma mãe afectuosa; um
ministro da França quase cinquentão, todo ardente de talento e de obras
inacabadas, já um pouco gasto pela vida; e, por cima de tudo isso, o céu limpo da
Ática, alternadamente azul ao sol e malva ao crepúsculo. Visitas diárias,
conversas cada vez mais íntimas durante uma chávena de café turco, quatro anos
passados numa familiaridade constante que nunca renuncia a certas reservas e a
certas graças antiquadas; a partida, por fim, e o arrancar do cruel adeus, a
ausência, uma visita breve ao cabo de longos anos, uma correspondência mantida
durante toda a vida. Tal é a história de Gobineau e das suas duas amigas
atenienses, Zoé e Maria Dragoumis. Parece ter preferido a mais velha, que era grave
e altiva, mas apercebemo-nos disso sobretudo porque, em geral, escreve à mais
nova, a arreliadora e risonha Maria, e ainda duvidamos se se trata de um amor
disfarçado de amizade ou de uma amizade mista de amor, ou antes, de mágoas.
A
colecção das Lettres de Gobineau
à deux Athéniennes abarca toda
uma gama de sentimentos delicados, um pouco desusados, talvez artificiais, mas
de modo algum falsos, sempre mais ou menos perturbada pelas mais ligeiras
relações de um homem com duas raparigas. O delicado problema não é apenas
colocado: Gobineau resolve-o com tacto incomparável: esse rude Viking que se
lançava ao assalto das ideias, encontra para as suas duas amigas o tom da
ternura mais alegre e mais doce. Sem se desnaturar, sem nunca perder a graça,
ela supera de modo brilhante a distância que o separa das duas jovens
cuidadosamente guardadas: ele reduz essa torrente de emoções, de pensamentos,
de experiências e de trabalhos às dimensões de um riacho de Atenas. Elas são as
suas conselheiras, as suas inspiradoras; é a elas que dá parte do seu projecto
da Histoire des Perses e de La Benaissance. Nunca se esquece
de acompanhar de respeito os beijos permitidos pela distância, que depõe mais quatro
mãozinhas que tocam o Septuor e só
por vezes lhe acontece aflorar de longe os seus cabelos. Esse nómada da
diplomacia serve-se delas para passar o Rio, Copenhaga e os horrores do Paris
da Comuna por um filtro grego». In Marguerite Yourcenar, En Pélerin et
Étranger, Gallimard, 1989, Peregrino e Estrangeiro, Ensaios, Livros do Brasil,
Lisboa, 1990.
Cortesia
LBrasil/JDACT