segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Peregrino e Estrangeiro. Ensaios. Marguerite Yourcenar. «… a pastora levando debaixo da comprida blusa o cordeiro nascido na véspera, o burrinho embranquecido pela poeira dos caminhos, ou o jovem pescador um pouco atarantado, imóvel como um bronze antigo, plantado na praça da aldeia»

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A Última Olímpica
«(…) Por pequena que seja, a aldeia não se espanta de ser atravessada por um autocarro de turismo ou de ser visitada por um avião, ou ainda, se se gaba de ter uma pequena enseada aberta ao mar, de ser acostada por algum iate vindo do estrangeiro, tal como Atenas tão-pouco fica surpreendida, pelas belas noites de Verão, de se ver atravessada por um rebanho de cabras transumantes, trocando a erva seca do Pentético pela erva seca do Parões. E os últimos noctâmbulos, sentados à mesa do terraço do café, nem sequer viram a cabeça; e os viajantes internacionais, deitados nas suas camas de hotel, ouvem batidos nos seus sonhos. O contraste, tradicional no nosso país, entre o aldeão e o citadino, está aqui despojado de sentido: o opulento armador e o chefe da aldeia, que veio tratar de algum assunto a Atenas, não contrastarão quando sentados à mesa do mesmo cafezinho na proximidade do Parténon; saborearão o mesmo líquido negro; beberricarão pelos mesmos copos de água e atirarão o resto à poeira numa libação inconsciente à frescura; estenderão ao mesmo garoto engraxador os sapatos, cedo reluzentes de brilho puxado com igual cuidado. Esta zona aldeã onde seca, em monte, a uva de Corinto, tem a sua taberna onde jovens elegantes de casaco coçado e senhores idosos de fato escuro, eternas personagens de coro grego, comentam as notícias do mundo e a do distrito no mesmo tom rápido e desprendido que os clientes dos cafés atenienses. Ainda como no teatro e para lembrar que a costa, os oliveirais ou as encostas ervosas das colinas estão muito perto, mensageiros do mar e dos campos passam de tempos a tempos sob os plátanos: a pastora levando debaixo da comprida blusa o cordeiro nascido na véspera, o burrinho embranquecido pela poeira dos caminhos, ou o jovem pescador um pouco atarantado, imóvel como um bronze antigo, plantado na praça da aldeia, de braço erguido e segurando delicadamente pelos ouvidos um enorme peixe azul:

Cartas de Gobineau a duas atenienses
Uma Atenas ainda provinciana apesar da sua recente categoria de capital, regida por uma monarquia de origem dinamarquesa; uma casa espaçosa com um rododendro; duas jovens de crinolina, de cabelos só há pouco tempo penteados para cima, estudam conscienciosamente piano e francês sob o olhar de uma mãe afectuosa; um ministro da França quase cinquentão, todo ardente de talento e de obras inacabadas, já um pouco gasto pela vida; e, por cima de tudo isso, o céu limpo da Ática, alternadamente azul ao sol e malva ao crepúsculo. Visitas diárias, conversas cada vez mais íntimas durante uma chávena de café turco, quatro anos passados numa familiaridade constante que nunca renuncia a certas reservas e a certas graças antiquadas; a partida, por fim, e o arrancar do cruel adeus, a ausência, uma visita breve ao cabo de longos anos, uma correspondência mantida durante toda a vida. Tal é a história de Gobineau e das suas duas amigas atenienses, Zoé e Maria Dragoumis. Parece ter preferido a mais velha, que era grave e altiva, mas apercebemo-nos disso sobretudo porque, em geral, escreve à mais nova, a arreliadora e risonha Maria, e ainda duvidamos se se trata de um amor disfarçado de amizade ou de uma amizade mista de amor, ou antes, de mágoas.
A colecção das Lettres de Gobineau à deux Athéniennes abarca toda uma gama de sentimentos delicados, um pouco desusados, talvez artificiais, mas de modo algum falsos, sempre mais ou menos perturbada pelas mais ligeiras relações de um homem com duas raparigas. O delicado problema não é apenas colocado: Gobineau resolve-o com tacto incomparável: esse rude Viking que se lançava ao assalto das ideias, encontra para as suas duas amigas o tom da ternura mais alegre e mais doce. Sem se desnaturar, sem nunca perder a graça, ela supera de modo brilhante a distância que o separa das duas jovens cuidadosamente guardadas: ele reduz essa torrente de emoções, de pensamentos, de experiências e de trabalhos às dimensões de um riacho de Atenas. Elas são as suas conselheiras, as suas inspiradoras; é a elas que dá parte do seu projecto da Histoire des Perses e de La Benaissance. Nunca se esquece de acompanhar de respeito os beijos permitidos pela distância, que depõe mais quatro mãozinhas que tocam o Septuor e só por vezes lhe acontece aflorar de longe os seus cabelos. Esse nómada da diplomacia serve-se delas para passar o Rio, Copenhaga e os horrores do Paris da Comuna por um filtro grego». In Marguerite Yourcenar, En Pélerin et Étranger, Gallimard, 1989, Peregrino e Estrangeiro, Ensaios, Livros do Brasil, Lisboa, 1990.

Cortesia LBrasil/JDACT