Jamais houve homem menos
maquiavélico do que Maquiavel. In Villari
Maquiavel, o prisioneiro do
maquiavelismo
«(…) Filho de advogado literato e por isso pobre, Nicolau Maquiavel,
cultor das letras, pobre morreu também. Legou-nos, inédita, uma obra que é um
sonho fantasioso de grandeza, tal como o estranho sonho que terá tido, segundo
consta, antes de morrer. Circula, entre a lenda e o possível, a narrativa do
sonho blasfemo de Maquiavel que, no leito de morte, teria, em onírica fantasia,
visto um mundo em que a turba dos pobres e dos simples caminhava para o Céu, os
filósofos antigos, Platão, Plutarco, Tácito, e outras graves figuras da cidadania condenadas
ao Inferno, porque estava escrito: Sapitentia huius saeculi inimica est Dei.
Posta em dúvida a sua autenticidade, o sonho tem servido como instrumento de
cristianização do ímpio Maquiavel, que
ante o momento de prestar contas ante um Deus que, com a sua obra, ofendera,
blasfemando-o pelas conveniências da política, terminara a vida mandando os
políticos, de que fora conselheiro, arder nas fogueiras infernais. Trata-se de
um sonho análogo, embora de sinal diverso, ao sonho de Cipião, que Cícero relata
no seu tratado sobre as repúblicas: para todos
os que conservaram, ajudaram e engrandeceram a pátria, está guardado no céu um
lugar especial. Mas não basta conhecer o homem e a sua circunstância,
importa também ter a percepção dos variados contextos pelos quais a obra passou
ao longo do tempo e as mais antagónicas leituras que proporcionou, sempre sem
esquecer em que estado se encontrava a península itálica onde foi escrita e encontrada
a crueza do poder e a malícia interesseira generalizada, afinal o cenário desta
encenação, O Grande Teatro do Mundo.
Estamos no reino da
complexidade. Sente-se isso vendo, por exemplo, o modo como a Cúria romana
recebeu a obra, com a naturalidade, primeiro, de quem observa coisa sua, para
depois a condenar ao catálogo dos livros proibidos. O livro foi aceite
primeiro com indiferente contemporização por um papado corrompido e em
promíscua relação com o poder temporal, destinatário natural de muitos destes
pensamentos; no capítulo XI, dedicado aos principados eclesiásticos, o papa
Leão X vê o seu pontificado retratado como potentíssimo
e Maquiavel a augurar que, erigido com
armas pelos seus santíssimos
antecessores, seja agora grandíssimo e
venerando através da sua bondade e
infinitas outras virtudes. Não poderia haver maior lisonja. O modelo
monárquico do papado, com a transformação do chamado património de São Pedro num principado, tendo à cabeça um sumo
pontífice, foi levado a cabo a partir da segunda metade do século XV quando o
papa Eugénio IV se estabelece definitivamente em Roma, em 1443,vitorioso sobre quantos pretendiam a supremacia da autoridade
dos concílios sobre o papa. A queda de Constantinopla em 29 de Maio de 1453, às mãos do turco Maomé II, veio
abrir a porta para a supremacia da IgrejaCatólica Apostólica Romana. Dotado
de exército próprio, de cerca de dez mil homens, a que acresciam mercenários, o
Estado Pontifício em pouco se distinguia das outras potências temporais. Pouco
mais de quarenta anos volvidos, em 1519,
por decreto do papa Paulo IV (nascido Gian Pietro Caraffa), O
Príncipe entrava, porém, na lista dos livros amaldiçoados pela doutrina
católica e, a partir daí, ler Maquiavel passou a significar estar em
pecado de heresia, o autor queimado em efígie, os teólogos a clamarem pela
fogueira como argumento final contra o seu pensar. Paulo IV procedeu à reorganização
do Tribunal do Santo Ofício (maldito), incumbido
da polícia da fé e do combate às heresias, criando a Congregação da Sacra
Romana e Universal Inquisição (maldita),
e lançou o Index dos livros proibidos, por decreto de 30 de Dezembro
de 1518, publicado no ano seguinte. Nele
todas as obras de Maquiavel, de Rabelais e de Erasmo de Roterdão
eram referidas como de leitura vedada. Com o Concílio de Trento, em 1564, foi elaborado um segundo catálogo
de livros proibidos (Index librorum probibitmum a Summo Pontifice) e
mantida a interdição sobre a obra de Maquiavel». In Nicolau Maquiavel, O Príncipe,
Introdução de José António Barreiros, tradução a partir do original de Maria
Jorge Figueiredo, Editorial Presença, Lisboa, 2008, ISBN 978-972-23-3951-3.
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