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Tudo começou no Poitou, onde na altura se encontrava o rei Filipe V e depressa
alastrou a todo o país. Os habitantes tanto das cidades como das aldeias
precipitaram-se sobre as leprosarias para aí exterminar os doentes, que de um
dia para o outro se haviam tornado inimigos públicos. Apenas as mulheres grávidas
eram poupadas, mas mesmo essas só até os bebés serem desmamados. Depois disso
eram atiradas para as fogueiras. Os juízes reais davam cobertura à hecatombe
com as suas sentenças e a nobreza emprestava-lhe as armas e os homens. Depois, mais
uma vez, voltaram-se contra os Judeus, acusados de cumplicidade com uma
conspiração imensa e imprecisa, inspirada, assegurava-se, pelos reis mouros de Granada
e de Tunes. Dir-se-ia que, com estes gigantescos sacrifícios humanos, a França
procurava apaziguar as suas angústias, os seus terrores. O vento da Aquitânia
vinha impregnado do cheiro atroz das fogueiras. Em Chinon, todos os judeus do
bailiado foram atirados para uma fossa imensa de fogo; em Paris foram queimados
na ilha a que tristemente davam o nome, em frente do palácio real, e onde
Jacques de Molay pronunciara a fatal profecia. E o rei morreu. Morreu da febre
e do mal de entranhas que contraíra no Poitou, na sua terra de apanágio; morreu
por ter bebido a água do seu reino.
Levou
cinco meses a extinguir-se no meio dos piores sofrimentos, consumido,
esquelético. Todas as manhãs mandava que abrissem as portas do seu quarto, na
Abadia de Longchamp, para onde mandara que o transportassem, e deixava que todos
os que por ali passavam se aproximassem do seu leito para lhes dizer: … eis aqui o rei de França, o vosso
soberano, o homem mais pobre do seu reino, já que não há ninguém cuja sorte não preferisse à
sua. Meus filhos, contemplai este príncipe do mundo e ponde em Deus os vossos
corações vendo como se compraz em jogar com as suas criaturas. E os
seus ossos foram juntar-se aos dos seus antepassados em Saint-Denis, no dia que
se seguiu ao da Epifania de 1322,
sem ser chorado por ninguém a não ser pela mulher. Contudo, fora um rei
sensato, que teve em conta o bem público. Declarara inalienável qualquer parte
do domínio real, unificara as moedas, os pesos e as medidas, reorganizara a justiça,
para que esta fosse aplicada com maior equidade, proibira a acumulação de
funções públicas, vedara aos prelados o acesso aos bancos do Parlamento e
dotara as finanças de uma administração à parte. Deveu-se-lhe ainda a
libertação dos servos. Desejara que a servidão desaparecesse completamente dos
seus estados; queria reinar sobre um povo de homens que gozassem da liberdade verdadeira, como a natureza os
fizera.
Evitou
as tentações da guerra, suprimiu muitas guarnições do interior para reforçar as
das fronteiras e sempre preferiu as negociações às aventuras militares
irreflectidas. Contudo, era ainda cedo para que o povo admitisse que a justiça
e a paz podiam custar sacrifícios pesados em dinheiro. Para onde foram, perguntava-se, os rendimentos, as dízimas e os empréstimos dos Lombardos e dos
Judeus, se ainda por cima foram distribuídas menos esmolas, não houve guerras e
não foram construídos novos edifícios? Para onde foi todo esse dinheiro?
Os grandes barões, provisoriamente submissos, e que por vezes, perante o turbilhão
que ia pelos campos, cerraram fileiras, por medo, em torno do soberano, esperaram
pacientemente o momento da vingança e contemplaram com um olhar apaziguado a
agonia de um jovem rei que não tinham amado». In Maurice Druon, Os Reis
Malditos, A Loba de França, 1966, tradução de Helena Ramos, Círculo de
Leitores, 2006, ISBN 978-972-42-3862-3.
Cortesia
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