sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

A Loba de França. Maurice Druon. «… eis aqui o rei de França, o homem mais pobre do seu reino, já que não há ninguém cuja sorte não preferisse à sua. Contemplai este príncipe do mundo e ponde em Deus os vossos corações vendo como se compraz em jogar com as suas criaturas»

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«(…) Tudo começou no Poitou, onde na altura se encontrava o rei Filipe V e depressa alastrou a todo o país. Os habitantes tanto das cidades como das aldeias precipitaram-se sobre as leprosarias para aí exterminar os doentes, que de um dia para o outro se haviam tornado inimigos públicos. Apenas as mulheres grávidas eram poupadas, mas mesmo essas só até os bebés serem desmamados. Depois disso eram atiradas para as fogueiras. Os juízes reais davam cobertura à hecatombe com as suas sentenças e a nobreza emprestava-lhe as armas e os homens. Depois, mais uma vez, voltaram-se contra os Judeus, acusados de cumplicidade com uma conspiração imensa e imprecisa, inspirada, assegurava-se, pelos reis mouros de Granada e de Tunes. Dir-se-ia que, com estes gigantescos sacrifícios humanos, a França procurava apaziguar as suas angústias, os seus terrores. O vento da Aquitânia vinha impregnado do cheiro atroz das fogueiras. Em Chinon, todos os judeus do bailiado foram atirados para uma fossa imensa de fogo; em Paris foram queimados na ilha a que tristemente davam o nome, em frente do palácio real, e onde Jacques de Molay pronunciara a fatal profecia. E o rei morreu. Morreu da febre e do mal de entranhas que contraíra no Poitou, na sua terra de apanágio; morreu por ter bebido a água do seu reino.
Levou cinco meses a extinguir-se no meio dos piores sofrimentos, consumido, esquelético. Todas as manhãs mandava que abrissem as portas do seu quarto, na Abadia de Longchamp, para onde mandara que o transportassem, e deixava que todos os que por ali passavam se aproximassem do seu leito para lhes dizer: … eis aqui o rei de França, o vosso soberano, o homem mais pobre do seu reino, já  que não há ninguém cuja sorte não preferisse à sua. Meus filhos, contemplai este príncipe do mundo e ponde em Deus os vossos corações vendo como se compraz em jogar com as suas criaturas. E os seus ossos foram juntar-se aos dos seus antepassados em Saint-Denis, no dia que se seguiu ao da Epifania de 1322, sem ser chorado por ninguém a não ser pela mulher. Contudo, fora um rei sensato, que teve em conta o bem público. Declarara inalienável qualquer parte do domínio real, unificara as moedas, os pesos e as medidas, reorganizara a justiça, para que esta fosse aplicada com maior equidade, proibira a acumulação de funções públicas, vedara aos prelados o acesso aos bancos do Parlamento e dotara as finanças de uma administração à parte. Deveu-se-lhe ainda a libertação dos servos. Desejara que a servidão desaparecesse completamente dos seus estados; queria reinar sobre um povo de homens que gozassem da liberdade verdadeira, como a natureza os fizera.
Evitou as tentações da guerra, suprimiu muitas guarnições do interior para reforçar as das fronteiras e sempre preferiu as negociações às aventuras militares irreflectidas. Contudo, era ainda cedo para que o povo admitisse que a justiça e a paz podiam custar sacrifícios pesados em dinheiro. Para onde foram, perguntava-se, os rendimentos, as dízimas e os empréstimos dos Lombardos e dos Judeus, se ainda por cima foram distribuídas menos esmolas, não houve guerras e não foram construídos novos edifícios? Para onde foi todo esse dinheiro? Os grandes barões, provisoriamente submissos, e que por vezes, perante o turbilhão que ia pelos campos, cerraram fileiras, por medo, em torno do soberano, esperaram pacientemente o momento da vingança e contemplaram com um olhar apaziguado a agonia de um jovem rei que não tinham amado». In Maurice Druon, Os Reis Malditos, A Loba de França, 1966, tradução de Helena Ramos, Círculo de Leitores, 2006, ISBN 978-972-42-3862-3.

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