Sharq
Al-Andalus. Estudios Mudéjares y Moriscos
«A propriedade detida ou usufruída pelos muçulmanos do reino
português revela características especificas, advindas de uma mescla entre
formas de exploração que se impõem no contexto da medievalidade ocidental, como
de uma individualidade imputável aos seus traços identitários, emanando do próprio
direito islâmico. Vector que, de resto, não surpreende na avaliação global de
uma identidade mudéjar, justamente singularizada pela sua dupla adscrição a
cultura maioritária, assim como aos valores matriciais que definem a sua
etnicidade e consequente alteridade como grupo diferenciado. Dualidade que
define uma identidade e um ethos, necessariamente distinta de outras dimensões políticas muçulmanas,
configurando o mudéjar do discurso historiográfico, de cuja sujeição aos
poderes cristãos não está ausente a sua própria participação nesses mesmos
mecanismos de poder. Aspecto bastas vezes preterido em função de uma
perspectiva demasiado estática dos processos sociais e de uma noção abstracta
de poder. O programa político dos reinos medievais cristãos, necessariamente
definido e controlado pelas suas elites, recupera um Islão domado, isto é,
submetido aos seus próprios interesses, através de actos escritos de legitimação.
Esta remição para a praxis política
de comunidades muçulmanas, administrativamente estruturadas e dispondo de
autoridades próprias, pressupõe um ininterrupto diálogo (ainda que
necessariamente assimétrico), que fluirá entre os dois extremos da escala política,
numa assumpção do monarca como o natural
protector dos seus muçulmanos. Estes,
de resto, no reino português, constituir-se-ão como os agentes sociais mais
activos na definição dos parâmetros da sua sujeição, através do seu próprio
capital cultural e simbólico, num processo de redefinição constante, adaptado e
solicitado pela natural evolução social e politica da medievalidade.
Direito
islâmico. Produção vernácula
O
direito islâmico constituir-se-á como um dos vectores estruturantes tanto de
identidade como de sujeição, aspectos complementares de um mesmo processo. Se,
num período formativa, ele enformara necessariamente as condições de permanência
das diferentes comunidades muçulmanas peninsulares (correspondendo a uma
natural premência dos conquistadores), a sua evolução não deixa de se fazer
sentir ao longo das diferentes centúrias, em função dos distintos contextos
considerados. Em finais do século XIV e ao longo do XV, é o monarca português que,
ao reivindicar a sistematização das cláusulas sobre as heranças dos muçulmanos,
estabelece uma apropriação lidimada no próprio direito sucessório islâmico, concitando
a produção de textos legais neste sentido. Acção que se estrutura num discurso
de legitimação, porque implica um registo de paralelismo com os dirigentes muçulmanos
(os pretéritos, mas também os coevos de Terra
de Mouros), canalizando para o soberano, os bens
que, por falta de herdeiros, seriam dirigidos para o erário publico. De resto,
esta perspectiva será expressamente enunciada no prólogo do segundo texto, que
se inicia justamente pela justificação ideológica da medida: Porque a herança dos Mouros forros moradores em estes Regnos,
e Senhorios pertencem a Nos [Rei] em muitos casos, assy como he devuda aos Reys
Mouros em seus Regnos, e Senhorio (…).
Neste
sentido, os dois textos elaborados, em português, sobre esta problemática pelos
letrados da comuna de Lisboa deixam claro a prioridade subjacente à sua própria
produção. O prólogo do mais pretérito, do reinado de João I (1385-1433),
refere que o levantamento se constitui como uma resposta à pergunta feita pelo
juiz Álvaro Peres, pelo qual o soberano ordenou que se soubesse de que modo ele
próprio se constituía como herdeiro dos bens dos muçulmanos. O segundo, de
Afonso V (1438-1481), justifica-se em função do soberano considerar a produção
anterior pouco legível (imperfeita,
e muito escura),
o que teria dado origem a muitos
debates, e contendas (…)
antre elle e os ditos Mouros. Para superar essa situação, o monarca incumbiu ao alcaide da
comuna de Lisboa a tarefa de juntar mouros
letrados e sabedores em sua lei,
para a corrigir e acrescentar no que necessário fosse. O resultado final será o
publicado nas Ordenações Gerais do Reino, com o título significativo De como El Rey deve herdar os Mouros forrros moradores em seus
Regnos, e Senhorio, num diploma
de uma maior abrangência e complexidade, denotando um total domínio da casuística
sunnita malikita». In Maria Filomena Lopes Barros, Sharq Al-Andalus,
Estudios Mudéjares y Moriscos, Propriedade e direito entre os muçulmanos
de Portugal, Dos bens comuns à gestão do património do rei, Separata nº 19, Teruel -
Alicante, 2008-2010, CIDEHUS, Universidade
de Évora, ISSN 0213-3482.
Cortesia
daUÉvora/JDACT