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E tanto o papa como o rei se mostravam impotentes perante as hordas de
iluminados que percorriam os caminhos, os rios humanos que engrossavam em cada
encruzilhada, como se a terra da Flandres, da Normandia, da Bretanha e do
Poitou tivesse sido enfeitiçada. Dez mil, vinte mil, cem mil... os pastorinhos marchavam em direcção a encontros
misteriosos. Às suas tropas iam-se juntando padres excomungados, monges
apóstatas, desordeiros, ladrões, mendigos e pu… À cabeça dos cortejos onde
jovens de ambos os sexos se entregavam à pior licenciosidade, aos piores desmandos,
era levada uma cruz. Cem mil viandantes andrajosos que entram numa cidade para
mendigar depressa se voltam para a pilhagem. O crime, que começou por não ser
mais que um acessório do roubo, depressa se tornou a satisfação de um vício. Os
pastorinhos, devastaram a França ao
longo de um ano inteiro, com um certo método na sua desordem, sem pouparem nem
igrejas nem mosteiros. Paris, apavorada, viu o exército de salteadores invadir
as suas ruas e o rei Filipe V de uma janela do seu palácio, procurar acalmá-los
com as suas palavras. Exigiam do rei que os encabeçasse. Tomaram de assalto o
Châtelet, mataram o preboste, pilharam a Abadia de Saint-Germain-des-Prés. Em
seguida, uma nova ordem, tão misteriosa como a que os reunira, encaminhou-os
para sul. Ainda os parisienses não se tinham acalmado e os pastorinhos já invadiam Orleães. A Terra Santa estava longe; quem teve
de sofrer o seu furor foram Burges, Limoges, Saintes, o Périgord e o Bordelais,
a Gasconha e o Agenais.
O
papa João XXII, receoso ao ver a vaga aproximar-se de Avinhão, ameaçou de excomunhão
os falsos cruzados. A necessidade que estes tinham de vítimas levou-os a atacar
os Judeus. A partir de então, as populações urbanas, aplaudindo os massacres, passaram
a confraternizar com os pastorinhos.
Foram atacados os guetos de Lectoufe,
de Auvilar, de Castelsarrasin, de Albi, de Auch, de Toulouse; aqui cento e
quinze cadáveres, ali centro e cinquenta e dois... Todas as cidades do
Languedoc tiveram direito à sua matança expiatória. Os judeus de Verdun-sur-Garonne
serviram-se dos próprios filhos como projécteis e em seguida degolaram-se uns aos
outros para não caírem às mãos dos loucos. Nessa altura o papa deu ordem aos seus
bispos e o rei aos seus senescais de que os judeus, cujos comércios eram necessários,
fossem protegidos. O conde de Foix, acorrendo em auxílio do senescal de Carcassona,
viu-se obrigado a dar batalha aos pastorinhos,
que, repelidos para os pântanos de Aigues-Mortes, morreram aos milhares,
espancados, trespassados, enterrados na areia, afogados. A terra de França bebia
o próprio sangue, engolia a própria juventude. O clero e os oficiais da coroa
uniram-se para perseguir os fugitivos. As portas das cidades foram-lhes fechadas
e os víveres e o alojamento recusados; foram encurralados nas passagens de
Cévennes; todos os que foram capturados acabaram enforcados, aos vinte e aos
trinta, em ramos de árvores. Alguns bandos erraram ainda durante perto de dois anos
e acabaram por se dispersar para as bandas de Itália. A França, o corpo da
França estava doente. Mal curada ainda a febre dos pastorinhos apareceu a dos leprosos.
Terão
sido os leprosos, aqueles infelizes de carnes corrompidas, rostos de mortos, mãos
transformadas em cotos, aqueles párias fechados nas suas leprosarias, antros de
contágio e de pestilência onde procriavam entre eles e de onde apenas podiam sair
com uma campainha na mão, os
responsáveis pela contaminação das águas? Sim, porque no Verão de 1321 as nascentes, os poços e as fontes
foram envenenados, em muitos sítios diferentes. E nesse ano o povo de França
olhou cobiçosamente os seus generosos rios, onde só com receio da morte a cada
novo golo de água alguém se atrevia a matar a sede. Teria o Templo deitado a
mão a venenos misteriosos, feitos de sangue humano, de urina, de ervas mágicas,
de cabeças de cobras, de patas de sapos esmagadas, de hóstias trespassadas e de
pêlos de meretrizes, que todos asseguravam
ter sido espalhados nas águas? Teria incitado à revolta o povo maldito,
inspirando-lhe, como alguns leprosos confessaram sob tortura, a vontade de que todos os cristãos
perecessem ou se tornassem eles próprios leprosos?» In Maurice
Druon, Os Reis Malditos, A Loba de França, 1966, tradução de Helena Ramos,
Círculo de Leitores, 2006, ISBN 978-972-42-3862-3.
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