terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Em Auschwitz. O Silêncio de Deus. João Medina. «… que ele mesmo teve o cuidado de lhes transmitir, um Deus que tem cóleras ou ternuras no seu trato com a humanidade, um Deus sentimental, humanizado, intervindo na História dos humanos»

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Aleph
«(…) Só o silêncio desnudo e desvinculado de qualquer estratagema artístico me permitiria homenagear uma força que chamo Deus e cuja grandeza inimaginável tento vagamente imaginar sabendo que apenas o meu silêncio pode render homenagem digna a uma força que eu mesmo conceberia como demasiado poderosa para poder ser vista em todo o seu esplendor imenso, como se fosse uma única areia do deserto que tentasse imaginar como seria o céu constelado que cobre o universo visível. Só o silêncio atemorizado, à maneira daquele que Pascal angustiadamente sentia, esse silêncio eterno dos espaços infinitos e tácitos, me pode socorrer para imaginar o que Deus possa ser: algo que só pelo meu absoluto e resignado silêncio posso respeitar e temer na sua suposta grandeza excessiva. Calar-me, em suma, seria a forma suprema de imaginar aquilo que excessivamente me ultrapassa e a que talvez eu pudesse dar o nome cómodo, ou convencional, de divino. Mas nada disto me aproximaria um milímetro daquilo que concebo como podendo ser a infinitude de um ser chamado Deus, uma vez que apenas me dispensaria de ter uma ideia antropomorfizada do conceito de Deus, tornando-lhe, ainda assim, incapaz de conceber a sua luminosa treva sem fundo.

Beth
Nunca entendi como é que se pode querer, ou intentar querer, provar Deus, demonstrá-lo. Há mesmo qualquer coisa de absurdo e fátuo nesse intento, como se ele fosse uma paródia da divindade que se quer mostrar como demonstrada ou demonstranda. Como é que algo tão transcendente pode ser demonstrado como se fosse o teorema de Fermat ou ainda qualquer outro enigma matemático ou lógico ou de qualquer outra natureza afim? Falar de Deus é, desde logo, verbiagem frívola, acto de loucura atrevida, desfaçatez da razão humana: porque é que durante séculos de fez teologia em vez de se ter ficado calado, humildemente calado diante de tamanho mistério incompreensível, desse mysterium tremendum e sem solução possível que era poder haver ou dever haver uma entidade transcendente anterior ao tempo, fundadora do tempo, actuante no tempo e, apesar disso, intemporal? Só a teologia negativa medieval ousou intentar um caminho diferente para Deus, atrevendo-se a dizê-lo impossível de ser nomeado, descrito, explicado, demonstrado, etc. Mas essa via negativa da teologia ficou-se pelo caminho, subsumiu-se na corrente da teologia positiva, mesmo quando alimentava subterrâneos veios místicos heterodoxos, não tendo decisiva sequência no pensamento cristão ocidental, ainda que todo ele tivesse sido marcado pela sua influência seminal, estabelecendo-se como prólogo de outras aventuras místicas mais intrépidas, mais fundas, a dois passos da heresia.
O mistério de Deus, e da sua improvável relação com as suas criaturas, devia ter sido sempre tomado como mistério, apenas como mistério, portanto de todo em todo insusceptível de demonstração ou prova alguma, filosófica, racional, teológica ou científica. A única prova de Deus só poderia ser fornecida pelo próprio Deus, comparecendo diante de nós e, ante nossos olhos mortais, varando-nos com a sua terrível presença, agindo de modo que o entendêssemos, ouvíssemos e víssemos, ou seja, de maneira que os nossos sentidos e a nossa pobre razão não tivesse outra solução a não ser a de aceitar a prova provada de um Deus que assim se abaixaria a provar-nos que é. No fundo, as duas grandes religiões do Livro optaram por um Deus pessoal, que se personaliza e antropomorfiza, que convive com os homens por ele criados, que intercede junto deles, se intromete nos seus negócios temporais e amorosos, lhes barra o caminho ou, ao contrário, propõe rotas para a salvação, lhes abre o mar para que passem, lhes dá as tábuas da sua Lei ou fulmina-os quando estes desobedecem a ditames que ele mesmo teve o cuidado de lhes transmitir, um Deus que tem cóleras ou ternuras no seu trato com a humanidade, um Deus sentimental, humanizado, intervindo na História dos humanos. Em suma, estamos diante de um Deus que se faz humano, sobretudo no cristianismo, a ponto de baixar à terra numa dada época da História humana, para se misturar com os homens e por estes ser crucificado. Ou um Deus que, em pleno século oitocentista, vindo do desaguar das Luzes, se digna convocar o Príncipe das Trevas para lhe perguntar como vai e se pode participar num repto lançado a um sábio germânico, já que é assim que pode ser entendido o Prolog im Himmel do Fausto de Goethe, ainda que coubesse a Mefistófeles garantir que não lhe interessam nem o mundo nem os sóis mas tão só como os homens se atormentam, prólogo no céu, do Fausto…» In João Medina, O Silêncio de Deus em Auschwitz, Aleph, seguido de O Museu do Holocausto, Edição da CM de Cascais, 2001, ISBD 972-637-089-2.

Cortesia da CMCascais/JDACT