Aleph
«(…) Só o silêncio desnudo e desvinculado de qualquer estratagema
artístico me permitiria homenagear uma força que chamo Deus e cuja grandeza
inimaginável tento vagamente imaginar sabendo que apenas o meu silêncio pode render
homenagem digna a uma força que eu mesmo conceberia como demasiado poderosa
para poder ser vista em todo o seu esplendor imenso, como se fosse uma única
areia do deserto que tentasse imaginar como seria o céu constelado que cobre o
universo visível. Só o silêncio atemorizado, à maneira daquele que Pascal
angustiadamente sentia, esse silêncio eterno dos espaços infinitos e tácitos, me
pode socorrer para imaginar o que Deus possa ser: algo que só pelo meu absoluto e resignado silêncio posso respeitar e temer
na sua suposta grandeza excessiva. Calar-me, em suma, seria a forma suprema
de imaginar aquilo que excessivamente me ultrapassa e a que talvez eu pudesse
dar o nome cómodo, ou convencional, de divino. Mas nada disto me aproximaria um
milímetro daquilo que concebo como podendo ser a infinitude de um ser chamado
Deus, uma vez que apenas me dispensaria de ter uma ideia antropomorfizada do
conceito de Deus, tornando-lhe, ainda assim, incapaz de conceber a sua luminosa
treva sem fundo.
Beth
Nunca entendi como é que se pode querer, ou intentar querer, provar
Deus, demonstrá-lo. Há mesmo qualquer coisa de absurdo e fátuo nesse intento,
como se ele fosse uma paródia da divindade que se quer mostrar como demonstrada
ou demonstranda. Como é que algo tão transcendente pode ser demonstrado como se
fosse o teorema de Fermat ou ainda qualquer outro enigma matemático ou lógico ou de qualquer outra natureza afim?
Falar de Deus é, desde logo, verbiagem frívola, acto de loucura atrevida,
desfaçatez da razão humana: porque é que durante séculos de fez
teologia em vez de se ter ficado calado, humildemente calado diante de tamanho
mistério incompreensível, desse mysterium tremendum e sem solução
possível que era poder haver ou dever haver uma entidade transcendente anterior
ao tempo, fundadora do tempo, actuante
no tempo e, apesar disso, intemporal? Só a teologia negativa medieval
ousou intentar um caminho diferente para Deus, atrevendo-se a dizê-lo
impossível de ser nomeado, descrito, explicado, demonstrado, etc. Mas essa via
negativa da teologia ficou-se pelo caminho, subsumiu-se na corrente da teologia positiva, mesmo quando
alimentava subterrâneos veios místicos heterodoxos, não tendo decisiva
sequência no pensamento cristão ocidental, ainda que todo ele tivesse sido
marcado pela sua influência seminal, estabelecendo-se como prólogo de outras
aventuras místicas mais intrépidas, mais fundas, a dois passos da heresia.
O mistério de Deus, e da sua improvável relação com as suas criaturas, devia
ter sido sempre tomado como mistério, apenas como mistério, portanto de todo em
todo insusceptível de demonstração ou prova alguma, filosófica, racional,
teológica ou científica. A única prova de Deus só poderia ser fornecida pelo
próprio Deus, comparecendo diante de nós e, ante nossos olhos mortais,
varando-nos com a sua terrível presença, agindo de modo que o entendêssemos,
ouvíssemos e víssemos, ou seja, de maneira que os nossos sentidos e a nossa
pobre razão não tivesse outra solução a não ser a de aceitar a prova provada de
um Deus que assim se abaixaria a provar-nos que é. No fundo, as duas grandes
religiões do Livro optaram por um Deus pessoal, que se personaliza e
antropomorfiza, que convive com os homens por ele criados, que intercede junto
deles, se intromete nos seus negócios temporais e amorosos, lhes barra o
caminho ou, ao contrário, propõe rotas para a salvação, lhes abre o mar para
que passem, lhes dá as tábuas da sua Lei ou fulmina-os quando estes desobedecem
a ditames que ele mesmo teve o cuidado de lhes transmitir, um Deus que tem
cóleras ou ternuras no seu trato com a humanidade, um Deus sentimental, humanizado,
intervindo na História dos humanos. Em suma, estamos diante de um Deus que se
faz humano, sobretudo no cristianismo, a ponto de baixar à terra numa dada
época da História humana, para se misturar com os homens e por estes ser
crucificado. Ou um Deus que, em pleno século oitocentista, vindo do desaguar
das Luzes, se digna convocar o Príncipe das Trevas para lhe perguntar como vai
e se pode participar num repto lançado a um sábio germânico, já que é assim que
pode ser entendido o Prolog im Himmel do Fausto de
Goethe, ainda que coubesse a Mefistófeles garantir que não lhe interessam nem o
mundo nem os sóis mas tão só como os
homens se atormentam, prólogo no céu, do Fausto…» In
João Medina, O Silêncio de Deus em Auschwitz, Aleph, seguido de O Museu do
Holocausto, Edição da CM de Cascais, 2001, ISBD 972-637-089-2.
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