Resumo:
«Em 1318 o rei Dinis I resolveu
ir em romaria a Compostela, para recolher-se em oração sobre o túmulo do
Apóstolo São Tiago Maior. Perante o curioso silêncio das Crónicas e
a inquestionável indiferença da historiografia portuguesa em relação a este
episódio, pretende-se reconstruir, através das fontes a disposição, os tempos e
as modalidades da jornada do monarca a Compostela. Nomeadamente,
serão indagadas as motivações e as razões profundas deste acto de devoção
pessoal do soberano, a fim de avaliar a sua carga simbólica e de contextualizar
este gesto no âmbito das complexas dinâmicas de poder daqueles anos. Para isso,
serão analisadas algumas iniciativas e acções concretas empreendidas por Dinis ao longo daquele mesmo ano no
âmbito político, social, religioso, cultural, artístico e as relativas também à
esfera pessoal do rei, interpretadas como directas consequências da
peregrinação a Compostela».
«Este artigo visa fazer luz sobre
a peregrinação do monarca Dinis I a Compostela, realizada em 1318, episódio da vida do rei
reconhecido pela historiografia portuguesa, mas que nunca foi verdadeiramente
objecto de aprofundamento científico. Perante o silêncio das crónicas,
procurou-se reconstruir a jornada do soberano a Santiago de
Compostela através do estudo de fontes documentais, editadas ou inéditas, mas
sobretudo tomando em consideração factos ocorridos naquele mesmo ano de 1318. Lidos no âmbito do quadro geral
dos acontecimentos daqueles anos, cruciais para a vida da monarquia portuguesa,
estes factos podem ser interpretados, em conjunto com as referidas fontes
documentais, como consequências directas do acto de devoção do monarca. No
início de 1318, o rei Dinis resolveu ir em peregrinação a
Compostela para se recolher em oração sobre o túmulo do Apóstolo São Tiago
Maior.
A historiografia portuguesa não
tem assumido uma atitude unívoca em relação a este acontecimento tão importante
da vida do monarca Dinis I: ao silêncio das crónicas seguiu-se uma omissão
geral do assunto pela maior parte dos historiadores. Com excepção de alguns
autores que têm defendido a efectiva realização da jornada a
Compostela, é curioso observar a continuação da indiferença total, nos estudos
respeitantes ao reinado de Dinis,
para com este tema ou a escassa vontade manifestada pelos pesquisadores de
indagar e aprofundar este episódio, revelador da espiritualidade do soberano. Parece
até que este acto penitencial, expressão, em certos aspectos, da grande
humildade do seu protagonista, não se adapta à imagem do rei forte e sábio
encarnado pelo Rei Lavrador,
mito historiográfico que, ainda hoje, não obstante as novas leituras e o
florescimento dos estudos relativos ao reinado dionisino,
sobrevive à passagem do tempo. O Rei
Lavrador, ao longo dos anos, foi substituído pelo Rei Civilizador e pelo Rei Poeta e Culto. Todavia, ainda não foi verdadeiramente
investigado o rei Dinis, filho
obediente da Santa Igreja de Deos, como ele próprio se proclama,
muito oportunamente, no testamento de 1322,
mas também como ele é definido pelo papa João XXII em diversas cartas dirigidas
a ele e aos seus familiares, antes e depois do seu falecimento.
Ao contrário do esquecimento a
que este episódio da vida de Dinis
foi votado, de resto vale a pena sublinhar a atenção e o espaço dados à
peregrinação a Santiago realizada pela rainha dona Isabel, a partir da Crónica
de D. Dinis de Rui de Pina e, em geral, em toda a produção
historiográfica nacional. Nem a Crónica de D. Dinis de 1419 nem a Crónica delRey D.
Dinis de Rui de Pina (1440-1512) referem a peregrinação do
rei ao túmulo de São Tiago Maior. Porém, temos a narração, pródiga de
informações, do cronista régio, o monge cisterciense frei Francisco Brandão.
De facto, o capítulo LXIV da VI Parte da Monarquia Lusitana (1672)
é parcialmente dedicado à descrição do caminho de Dinis a Compostela, empreendido juntamente com um grupo de nobres e
fiéis servidores: primeiro, entre todos, o inseparável Afonso Sanches,
filho natural e mordomo mor do monarca. O cronista conta que o
soberano partiu de Lisboa no início do ano de 1318, chegando ao destino a 12 de Fevereiro, dia da festa de
Nossa Senhora da Purificação (sic). Na indicação da data
de chegada do cortejo real deve reconhecer-se um erro, provavelmente do tipógrafo,
pois a festividade em questão, a festa da Purificação da Virgem Maria,
vulgarmente recordada como Nossa Senhora da Luz ou Nossa Senhora das Candeias e
mais popularmente conhecida como Festa da
Candelária, é uma festa fixa no calendário litúrgico. Ocorre exactamente 40 dias após o
parto da Virgem Maria e, portanto, calha sempre no dia 2 de Fevereiro e
não a 12, dia em que se celebra a memória de Sta. Eulália, virgem e mártir.
Porém, não deve ter sido casual o facto de, por ocasião de tal festividade, ter
sido celebrada uma missa solene e, ao mesmo tempo, de boas-vindas ao rei pelo
arcebispo Berenguel de Landora, que somente pouco tempo antes tomara posse do
arcebispado de Compostela. Também Hernando del Castillo, autor citado por
Francisco Brandão, na II Parte da sua Historia General de Santo Domingo y
de su Orden (1612), ao contar a vida do arcebispo
Berenguel, pertencente à família dominicana, refere com pormenores o encontro
entre Dinis I e o prelado que, na evolução do conflito entre o monarca
português e o herdeiro do trono, assumirá um papel pacificador e de
intermediário por explícito mandato da Sé Apostólica.
Além destas fontes literárias
tardias, outros dados e documentos podem ser adoptados em favor da realização
da peregrinação do rei Dinis I de acordo com os tempos e as modalidades
recordados pelo cronista régio. Por exemplo, o estudo dos itinerários do rei,
estabelecidos a partir da análise da Chancelaria dionisina, a
documentação emitida pela administração régia, parecem confirmar o efectivo
desenvolvimento da peregrinação em 1318
e na altura do ano indicada. De facto, embora seja obrigatório lembrar que a Chancelaria
não constitui um tombo completo, pois pode apresentar lacunas também
consistentes, podemos confirmar o que é referido pela Monarquia Lusitana,
confrontando os dados surgidos através da análise dos itinerários com as
afirmações do autor. Portanto, é provável que o Dinis tenha ido em peregrinação a Compostela entre 12 de Janeiro,
data a que remonta o último diploma, emitido de Estremoz, registado pela Chancelaria
antes de uma longa pausa, e o dia 22 de Fevereiro, data em que encontramos
novamente o rei em Montemor-o-Novo. Trata-se dum lapso de tempo bastante amplo
(41 dias), em que a Chancelaria, pelo menos em função dos dados
disponíveis, permanece muda, ao
contrário de outros meses do ano quando a produção de diplomas e autos, se bem
com algumas pausas que chegam a atingir a quinzena de dias, apresenta prazos em
geral bastante mais curtos1. Por outro lado, a favor desta hipótese está a descoberta, pelos especialistas do
sector, de segmentos de possíveis itinerários jacobeus no Alto e Baixo
Alentejo, incluindo cidades como Estremoz e Montemor-o-Novo, coincidentes, na
sua maior parte, com trajectos das antigas vias romanas». In Giulia
Rossi Vairo, Pro Salute Animae. A peregrinação
do rei Dinis I a Compostela. Antecedentes e consequências, Grupo
Informal de História Medieval CITCEM, Universidade do Porto, Faculdade de
Letras, Incipit, Workshop de estudos
medievais da U. do Porto, 2009-2010. GIHM. Coordenação de Flávio Miranda e
Joana Sequeira, CITCEM, Porto 2012, IHA,
Universidade Nova de Lisboa, ISBN 978-972-8932-94-7.
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