segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Pro Salute Animae. A peregrinação do rei Dinis I a Compostela. Antecedentes e consequências. Giulia Vairo. «… a favor desta hipótese está a descoberta, pelos especialistas do sector, de segmentos de possíveis itinerários jacobeus no Alto e Baixo Alentejo, incluindo cidades como Estremoz e Montemor-o-Novo, coincidentes, na sua maior parte, com trajectos das antigas vias romanas»

Cortesia de wikipedia e jdact

Resumo:
«Em 1318 o rei Dinis I resolveu ir em romaria a Compostela, para recolher-se em oração sobre o túmulo do Apóstolo São Tiago Maior. Perante o curioso silêncio das Crónicas e a inquestionável indiferença da historiografia portuguesa em relação a este episódio, pretende-se reconstruir, através das fontes a disposição, os tempos e as modalidades da jornada do monarca a Compostela. Nomeadamente, serão indagadas as motivações e as razões profundas deste acto de devoção pessoal do soberano, a fim de avaliar a sua carga simbólica e de contextualizar este gesto no âmbito das complexas dinâmicas de poder daqueles anos. Para isso, serão analisadas algumas iniciativas e acções concretas empreendidas por Dinis ao longo daquele mesmo ano no âmbito político, social, religioso, cultural, artístico e as relativas também à esfera pessoal do rei, interpretadas como directas consequências da peregrinação a Compostela».

«Este artigo visa fazer luz sobre a peregrinação do monarca Dinis I a Compostela, realizada em 1318, episódio da vida do rei reconhecido pela historiografia portuguesa, mas que nunca foi verdadeiramente objecto de aprofundamento científico. Perante o silêncio das crónicas, procurou-se reconstruir a jornada do soberano a Santiago de Compostela através do estudo de fontes documentais, editadas ou inéditas, mas sobretudo tomando em consideração factos ocorridos naquele mesmo ano de 1318. Lidos no âmbito do quadro geral dos acontecimentos daqueles anos, cruciais para a vida da monarquia portuguesa, estes factos podem ser interpretados, em conjunto com as referidas fontes documentais, como consequências directas do acto de devoção do monarca. No início de 1318, o rei Dinis resolveu ir em peregrinação a Compostela para se recolher em oração sobre o túmulo do Apóstolo São Tiago Maior.
A historiografia portuguesa não tem assumido uma atitude unívoca em relação a este acontecimento tão importante da vida do monarca Dinis I: ao silêncio das crónicas seguiu-se uma omissão geral do assunto pela maior parte dos historiadores. Com excepção de alguns autores que têm defendido a efectiva realização da jornada a Compostela, é curioso observar a continuação da indiferença total, nos estudos respeitantes ao reinado de Dinis, para com este tema ou a escassa vontade manifestada pelos pesquisadores de indagar e aprofundar este episódio, revelador da espiritualidade do soberano. Parece até que este acto penitencial, expressão, em certos aspectos, da grande humildade do seu protagonista, não se adapta à imagem do rei forte e sábio encarnado pelo Rei Lavrador, mito historiográfico que, ainda hoje, não obstante as novas leituras e o florescimento dos estudos relativos ao reinado dionisino, sobrevive à passagem do tempo. O Rei Lavrador, ao longo dos anos, foi substituído pelo Rei Civilizador e pelo Rei Poeta e Culto. Todavia, ainda não foi verdadeiramente investigado o rei Dinis, filho obediente da Santa Igreja de Deos, como ele próprio se proclama, muito oportunamente, no testamento de 1322, mas também como ele é definido pelo papa João XXII em diversas cartas dirigidas a ele e aos seus familiares, antes e depois do seu falecimento.
Ao contrário do esquecimento a que este episódio da vida de Dinis foi votado, de resto vale a pena sublinhar a atenção e o espaço dados à peregrinação a Santiago realizada pela rainha dona Isabel, a partir da Crónica de D. Dinis de Rui de Pina e, em geral, em toda a produção historiográfica nacional. Nem a Crónica de D. Dinis de 1419 nem a Crónica delRey D. Dinis de Rui de Pina (1440-1512) referem a peregrinação do rei ao túmulo de São Tiago Maior. Porém, temos a narração, pródiga de informações, do cronista régio, o monge cisterciense frei Francisco Brandão. De facto, o capítulo LXIV da VI Parte da Monarquia Lusitana (1672) é parcialmente dedicado à descrição do caminho de Dinis a Compostela, empreendido juntamente com um grupo de nobres e fiéis servidores: primeiro, entre todos, o inseparável Afonso Sanches, filho natural e mordomo mor do monarca. O cronista conta que o soberano partiu de Lisboa no início do ano de 1318, chegando ao destino a 12 de Fevereiro, dia da festa de Nossa Senhora da Purificação (sic). Na indicação da data de chegada do cortejo real deve reconhecer-se um erro, provavelmente do tipógrafo, pois a festividade em questão, a festa da Purificação da Virgem Maria, vulgarmente recordada como Nossa Senhora da Luz ou Nossa Senhora das Candeias e mais popularmente conhecida como Festa da Candelária, é uma festa fixa no calendário litúrgico. Ocorre exactamente 40 dias após o parto da Virgem Maria e, portanto, calha sempre no dia 2 de Fevereiro e não a 12, dia em que se celebra a memória de Sta. Eulália, virgem e mártir. Porém, não deve ter sido casual o facto de, por ocasião de tal festividade, ter sido celebrada uma missa solene e, ao mesmo tempo, de boas-vindas ao rei pelo arcebispo Berenguel de Landora, que somente pouco tempo antes tomara posse do arcebispado de Compostela. Também Hernando del Castillo, autor citado por Francisco Brandão, na II Parte da sua Historia General de Santo Domingo y de su Orden (1612), ao contar a vida do arcebispo Berenguel, pertencente à família dominicana, refere com pormenores o encontro entre Dinis I e o prelado que, na evolução do conflito entre o monarca português e o herdeiro do trono, assumirá um papel pacificador e de intermediário por explícito mandato da Sé Apostólica.
Além destas fontes literárias tardias, outros dados e documentos podem ser adoptados em favor da realização da peregrinação do rei Dinis I de acordo com os tempos e as modalidades recordados pelo cronista régio. Por exemplo, o estudo dos itinerários do rei, estabelecidos a partir da análise da Chancelaria dionisina, a documentação emitida pela administração régia, parecem confirmar o efectivo desenvolvimento da peregrinação em 1318 e na altura do ano indicada. De facto, embora seja obrigatório lembrar que a Chancelaria não constitui um tombo completo, pois pode apresentar lacunas também consistentes, podemos confirmar o que é referido pela Monarquia Lusitana, confrontando os dados surgidos através da análise dos itinerários com as afirmações do autor. Portanto, é provável que o Dinis tenha ido em peregrinação a Compostela entre 12 de Janeiro, data a que remonta o último diploma, emitido de Estremoz, registado pela Chancelaria antes de uma longa pausa, e o dia 22 de Fevereiro, data em que encontramos novamente o rei em Montemor-o-Novo. Trata-se dum lapso de tempo bastante amplo (41 dias), em que a Chancelaria, pelo menos em função dos dados disponíveis, permanece muda, ao contrário de outros meses do ano quando a produção de diplomas e autos, se bem com algumas pausas que chegam a atingir a quinzena de dias, apresenta prazos em geral bastante mais curtos1. Por outro lado, a favor desta hipótese está a descoberta, pelos especialistas do sector, de segmentos de possíveis itinerários jacobeus no Alto e Baixo Alentejo, incluindo cidades como Estremoz e Montemor-o-Novo, coincidentes, na sua maior parte, com trajectos das antigas vias romanas». In Giulia Rossi Vairo, Pro Salute Animae. A peregrinação do rei Dinis I a Compostela. Antecedentes e consequências, Grupo Informal de História Medieval CITCEM, Universidade do Porto, Faculdade de Letras, Incipit,  Workshop de estudos medievais da U. do Porto, 2009-2010. GIHM. Coordenação de Flávio Miranda e Joana Sequeira, CITCEM, Porto 2012, IHA, Universidade Nova de Lisboa, ISBN 978-972-8932-94-7.

Cortesia da UPorto/JDACT