«Este artigo aborda a relação
entre literatura e estados de excepção, o problema crítico posto pela
representação que pode, ou não, estetizar a violência. Apresentado o problema crítico,
são analisados alguns contos. Ao longo de sua trajectória, o escritor argentino
ficou conhecido por contos e romances que escapam à moldura clássica do
realismo. Para definir o seu estilo, e de outros escritores latino-americanos
daquele período, a crítica cunhou rótulos do tipo realismo fantástico, mágico
ou maravilhoso. Ao leitor atento não escapa que esses rótulos genéricos,
aplicados, por exemplo, a Cortázar, Borges, Garcia Márquez e
Alejo Carpentier, ao mesmo tempo, são imprecisos. É certo que Cortázar
gostava do género fantástico, que comparece de muitos modos n sua obra.
No entanto, melhor seria notar o modo como o escritor argentino radicado em
Paris cria uma estranheza profunda a partir da vida mais comum e quotidiana. Os
mais entusiastas do fantástico, do mágico e do maravilhoso costumam descartar,
por inteiro, o realismo. Muitas vezes, chegando a um novo tipo de folclore em
relação à América Latina, que seria justamente mágica e maravilhosa, por
oposição ao seco racionalismo europeu. Que isso resulta numa idealização e
folclorização do atraso e da miséria na América Latina não é difícil notar. Escritor
culto e urbano, leitor incansável e preparado, Cortázar passou longe e
ao largo dessas reduções folclóricas. Mais que folclóricas, regressivas, porque
representam a América Latina na forma de cartões postais exóticos, os pobres
passeando na paisagem exuberante, a dureza da injustiça diluída em variações
idealistas que se pode, ainda e sempre, entender como sequelas do
subdesenvolvimento. Para resumir o argumento, não é difícil notar que a
representação realista está presente nos relatos de Cortázar, com maior ou
menor ênfase, justo do ângulo da vida comum e quotidiana. A diferença
específica está no modo como a composição contrapõe a esse realismo de base o
fantástico, o insólito, o inesperado, o excêntrico, o deslocado, como se queira
chamar, criando a força e o alcance do efeito estético. Sobretudo nos contos,
nas composições curtas, construídas com muita precisão, formas breves que Cortázar
considerava perfeitas, redondas, quase geométricas. De modo que a realidade não
é sem mais delongas descartada, mas posta em tensão com ângulos que escapam ao
racionalismo estreito, ao que é estabelecido e definido, ao que se apresenta
pronto e fechado, integrado e conformado ao rótulo de realidade. Daí o desejo, sempre presente em Cortázar, de criar pontes e passagens, jogar com o
tempo e o espaço, tomar distância do que se repete e empobrece a imaginação, a
vida, a própria percepção da realidade. A certa altura da vida,
empenhado em lutas políticas no campo da esquerda, Cortázar quis juntar as duas águas, as duas vertentes,
a fantástica e a realista, a que dá asas à imaginação e a que trata da
realidade histórica mais próxima e presente, justo pelo ângulo duro dos estados
de excepção. Era um movimento de risco, que se pode ler no romance Libro
de Manuel, tratando directamente da
luta armada contra a ditadura militar na Argentina. No conjunto da obra de Cortázar,
Libro de Manuel ocupa um lugar difícil. Sem exagero, é possível dizer
que nessa narrativa o escritor argentino faz uma aposta de alto risco, com
plena consciência do movimento que fazia e das reacções que poderia
desencadear. Ao contrário do escritor famoso que apenas administra a sua obra e
seu património, o valor do nome já firmado e consolidado, no começo da década
de 1970 Cortázar escreve e
publica Libro de Manuel. Onde se podem ler as inquietações presentes em Rayuela, todo o inconformismo de
fundo libertário posto ao lado da dureza da luta armada. A preocupação política
do escritor argentino era clara, e foi mais de uma vez enfatizada: em contato
com alguns militantes da luta armada que passaram por Paris, notou neles uma
secura, uma falta de humor, uma rigidez, um tipo de atitude sem nuances que
sugeria, caso vencessem, uma Revolução que não seria a imaginada por Cortázar».
In
André Bueno, Alguns contos de Cortázar. Literatura e autoritarismo, Espaço
urbano e Experiências de desolação e violência, revista nº 19, 2012, ISSN 1679-849X.
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