«Em 1693, o frei António Santo Elias, no imprimatur do livro Trattado
único da constituiçam pestilencial de Pernambuco, que seria publicado
um ano depois, emitia o seguinte juízo a respeito do conteúdo da obra do médico
português João Ferreira Rosa: Li o tratado da constituição pestilencial
de Pernambuco que compôs João Ferreyra Rosa medico formado na Universidade de
Coimbra, & assistente no mesmo estado, & não achei nele cousa alguma
que encontre nossa Santa Fé, ou bons costumes; antes me parece será muito útil
para as Capitanias do Brasil para onde com especialidade o compõem o autor,
& ainda para alguns lugares deste Reino aonde se padece o mesmo detrimento
de curarem todo o gênero de males aqueles que só aprenderam a rasgar as veias,
ou a curar feridas, & chagas (in
ROSA, 1694: Imprimatur). O imprimatur deixava claro a utilidade de tal
obra: em primeiro lugar, o conteúdo do livro voltava-se para as
Capitanias do Brasil, notadamente aquela pernambucana, auxiliando os poucos
médicos e os muitos leigos que se encontravam nos trópicos ao melhor
conhecimento da enfermidade que enfrentavam naquele momento. Em segundo
lugar, o interesse da obra se mostrava também quanto à regulação das actividades
médicas empreendidas por aqueles que, no dizer mesmo de Rosa, se
intrometem a curar na falta de médicos nestas povoações. Além disso, o
imprimatur também salientava a situação em vigor, tanto no Brasil quanto em
Portugal, da falta de médicos peritos, que fazia com que os muitos cirurgiões,
barbeiros e apotecários tomassem para si funções que aparentemente não lhes
cabiam. Estes tais intrometidos,
mencionados pelo censor e pelo próprio Rosa, ficavam ainda mais
aparentes num parágrafo da parte do Tratado que se referia a Noticia dos motivos da primeira disputada.
Dizia o autor que: Me excitou o desejo de alguma utilidade para estas
Capitanias (…) (em cujas povoações se intrometem a curar na falta de médicos os
cirurgiões, & barbeiros, & outras pessoas; aos quais dará alguma luz
este meu trabalho, por não poderem tirar de outros volumes que não tem, nem
entendem, cousa que tão facilmente acomode). A procurar o prelo; assim por ser
este tratado em romance, & não haver muitos de semelhante matéria em nosso
idioma.
Assim sendo, o tratado de Rosa, contribuía para a
compreensão da doença pestilencial entre os médicos menos preparados, como os
cirurgiões e barbeiros. Dai o facto dele ter sido escrito em língua vulgar e
não em latim. Outrossim, ele também se propunha a corrigir certas compreensões equivocadas acerca da doença que no
momento vigia nos trópicos. Isso fica bastante evidente logo no início do
tratado, na crítica que o autor faz à interpretação que o cirurgião flamengo
Antonio Brebon havia feito da doença pernambucana. Brebon era cirurgião
de um dos navios portugueses que havia aportado em Pernambuco. No momento em
que o dito navio deixava a referida capitania, o mal que assolava a cidade
havia também se infiltrado entre os tripulantes da nau e causava problemas para
os viajantes. Segundo a própria narrativa do cirurgião, que Rosa anexou
ao seu tratado, os tripulantes morriam pouco a pouco sem que ninguém
encontrasse a cura. Antonio Brebon então, resolveu-se, com licença do capitão
do navio, praticar uma autópsia num dos corpos dos doentes que haviam morrido
na nau para tentar descobrir a causa de tal mal e seus possíveis remédios. Ao
abrir o corpo do cadáver morboso, Brebon relata que: … dando lhe
principio pelo peito, aonde não achou lesão alguma, nem motivo que desse causa
à morte. E descendo ao estomago, & região do ventre, achou o figado podre
da parte interior o qual estava de diversa cor da natural, & de hum pedaço
de figado que não estava corrupto; & o baço estava são, & ileso, como
também o bofe; & a bexiga do fel estava quase seca, & com diferente cor
da que devia ter: & achou ele testemunha que a podridão que estava no
figado, estava no original das veias que vem do mesmo figado; mas ele
testemunha se não persuade que as lombrigas, que achou, pudessem picar no dito
figado. E fazendo mais exame no estomago, achou nas membranas dele quantidade
de humor viscoso de cor negra a modo de felugem, & no estomago algumas
lombrigas grandes, & pequenas da qualidade das compridas. Entretanto,
o ponto importante da autópsia do cirurgião flamengo é o facto deste observar
nas lombrigas achadas no corpo analisado a causa principal da doença que
assolava a capitania de Pernambuco. É por isso que Antonio Brebon proporá
emplastros vesicatórios na nuca, braços e pernas, para expurgar a matéria pútrida,
causada, segundo ele, pelo picar das
lombrigas, e bebidas vermifugas, para expurgar as lombrigas e curar o mal. Esta
alternativa será largamente criticada na disputada I de Rosa,
afirmando como argumento principal aquele de que as doenças complexas, como
era, segundo ele, a tal peste brasileira, deveriam ser curadas com remédios
complexos. E portanto a solução proposta pelo cirurgião flamengo, sendo simples
demais, não poderia ser aceite. Os argumentos de Rosa baseavam-se em
obras de autores reputados por grandes médicos e sábios, como Cypriano Maroja,
Luís Mercado, Zacuto Lusitano e Daniel Sennert. Dai que a alternativa de Rosa apresentava-se
como a mais autorizada». In Bruno Boto Leite, Instituto Universitário
Europeo, Florença, Teoria da peste. Regulação
da profissão médica. Trattado unico da
constituiçam pestilencial de Pernambuco. 1694. João Ferreira Rosa, Anais
do XXVI Simpósio Nacional de História, ANPUH, São Paulo, 2011.
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