Uma introdução à sua leitura
«(…) Não nos ficaram, nas crónicas,
referências muito detalhadas ao príncipe, apenas adolescente quando morreu, à
sua cultura ou à sua personalidade. Conhecemos, isso sim, as descrições
necessariamente elogiosas dos poetas, nomeadamente de Cataldo. Leia-se
esta passagem da Oração proferida por Cataldo à chegada da Princesa
Isabel a Portugal, diante da porta da cidade de Évora: Se observardes nele a elegância do corpo, a
forca e a hábil disposição para todas as práticas honestas, com verdade e
segurança direis que apenas na criação deste príncipe esgotou a natureza toda a
sua força. De grande estatura, aparência viril, olhos vivos, cabelo louro, de
cor branca com um rubor muito a propósito. (...) E quanto aos seus costumes,
talento, afabilidade, modéstia, piedade, liberalidade e demais dotes do
espírito, nunca, segundo o parecer dos homens sábios, nem nos nossos tempos nem
nos antigos se viu, ouviu ou leu, nos livros de quaisquer autores, alguém que o
excedesse. É nele tão grande a ponderação, que tudo quanto diz e faz não parece
ter origem num rapaz de quinze anos, mas num idoso Catão.
Chegados à idade aprazada, os príncipes
casaram, por palavras de presente, no meio de grandes festejos e alegria geral.
Os preparativos para as celebrações e as próprias celebrações prolongaram-se
por longos meses e não foram muito afectadas pela morte da infanta dona Joana,
irmã do rei João II. Durava ainda o clima festivo quando, em 12 de Julho
de 1491, se deu, nas margens do
Tejo, na ribeira do Alfange, perto de Santarém, o trágico acidente que
vitimaria o príncipe. Com ele morreram, então, na cabana de um pobre pescador,
os sonhos de uma Península politicamente unificada e pacificada, governada pelos
herdeiros das suas duas maiores casas reais: a de Portugal e a de
Castela/Aragão. Considerando a alegria que se viveu, por largos meses, em
Portugal, com este casamento; os preparativos faustosos para os festejos: os
divertimentos ininterruptos; os lautos jantares; a participação de toda a
nobreza portuguesa, de artistas e de artesãos; a felicidade dos príncipes, na
flor da idade, saudáveis e com um auspicioso futuro; considerando, enfim, tanta
esperança e júbilo, perante a morte repentina de Afonso, bem poderíamos dizer como Faria Sousa … por cierto que quien ocho meses antes le
uviera visto gozar de los mayores triunfos, regalos, y regozijos, y agora le pudiera
ver tendido sobre un poco de heno, en la miserable cavana de um pescador, no
tendria que pidir para componerse mayor espejo à la fortuna.
No Segundo
livro de Visões, Cataldo reflecte também sobre esta contingência
da existência humana, tentando justificá-la á luz dos conceitos cristãos. A
morte do príncipe provocou a consternação geral e reflectiu-se na literatura.
Com efeito, muitos poetas a lamentaram, em versos de tom elegíaco. Salientemos,
apenas, três composições do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende: Trovas de Álvaro Britto, à morte do principe
Dom Afonso, que Deos tem; De Dom Joâ
Manuel ha morte do Prinçepe Dom Affonso, que Deos tem, em modo de lamentaçam
e De Luys Anrryquez aa morte do Prinçepe Dom
Affonso, que Deos tem. O mesmo Garcia de Resende alude, na sua Miscelânea,
ao trágico acontecimento:
«Era
de dezaseis annos
e
casado de octo meses
perfecto
entre os mudanos
muy
quisto dos castelhanos
descanso
dos portugueses
hua
triste terça feira
correndo
hua carreira
em
hum cavallo cahio
nunca
fallou nem bolio
e
morreo desta maneira»
Cataldo, além dos muitos epitáfios que lhe dedicou, escreveu também obras de
maior fôlego, como o Segundo livro de Visões ou o De Obi tu
Principis Alphonsi, em quatro livros. Neste Segundo livro de Visões. Cataldo recorre ao artifício
poético de uma fantástica visita/aparição do espírito de Afonso a sua mãe. No decurso desta e de posteriores visitas, o
príncipe, e, através dele, o poeta, entrega-se a profundas e extensas
considerações sobre a vida e a morte do homem, em geral. O texto faz supor um
tom elegíaco, mas a sua finalidade não é lamentar ou chorar desesperadamente
aquele que morreu; é, antes, consolar os que ainda vivem e libertá-los do
sofrimento: Muitas vezes
desejei eu renunciar à companhia dos santos e demandar os reinos paternos,
vindo do mais alto do céu, para te consolar, minha triste mãe, para te libertar
do luto e para te fazer abandonar esse jeito de tristeza. Na verdade, o
príncipe passara para um mundo melhor, completamente diferente da terra, onde
gozava da companhia dos anjos e de Deus, calcorreando os caminhos celestes: Choraste-me como se eu estivesse privado
do dom da vida, enquanto eu vivia entre os céus e os coros gloriosos. Esta
ideia, marcada pelas concepções cristãs da morte, transforma o carácter
negativo desta em possibilidade de ascender a uma nova vida mais feliz, em
salvação e em glória. A vida sobre a terra toma, agora, o carácter negativo: ...
mostrarei que todas as coisas estão
repletas de medo sem sentido e que nada há de agradável para os que levam uma
vida vazia». In Helena Costa Toipa, O Segundo Livro de
Visões de Cataldo Sículo, Uma introdução à sua leitura, Universidade
Católica, Centro de Viseu, Revista Humanitas, volume XLV, 1993, Universidade de
Coimbra.
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