«Tornou-se um
lugar comum distinguir entre as sesmarias no reino e as sesmarias no império.
As primeiras, assimiladas à dada de terras em pequena quantidade, destinadas
portanto a facultá-las aos cultivadores
directos e, nas segundas, constatando-se já doações em quantidades tais que pressupunham
obrigatoriamente a utilização de mão de obra de terceiros. Assim, a primeira
tarefa que se impõe na abordagem deste tema é, necessariamente, a da clarificação
do conceito e, nomeadamente, averiguar se existem ou não duas práticas diferenciadas
de doação em sesmaria. Esta necessidade obriga, pois, a que se comece por uma breve
análise da historiografia disponível, que terá, naturalmente, como ponto de
partida o livro sempre citado, mas nem sempre devidamente utilizado: Sesmarias
medievais portuguesas. Logo nos três primeiros capítulos, Virgínia Rau procura
contextualizar, na longa duração e no quadro específico dos séculos XIV-XV, a
prática de doações em sesmaria, assinalando desde logo a sua presença tanto em
terras concelhias, como em reguengos e terras senhoriais. No terceiro capítulo
indica ainda que os sesmeiros concelhios são, eles próprios, por vezes, de
nomeação régia. Destaca ainda que nas terras senhoriais ... o rei delegava nos donatários não só a
doação das sesmarias como a nomeação do sesmeiro. Ainda num quadro de
caracterização prévia das terras dadas em sesmaria quanto à sua extensão,
refere numerosos casos de doações de pequenas parcelas, que se enquadram no sentido
habitualmente atribuído a esta prática, mas também doações territorialmente muito
vastas, como as do paul de Trava, doado a Fernando de Castro em 1432, e do paul do Boquilobo, doado ao
infante Henrique, de cuja casa Fernando de Castro era governador. Mas, mais importantes que estas doações de extensão
significativa a alguns grandes, parece-me o facto de estes reclamarem e obterem
para si o direito de doar terras em sesmaria, como será o caso do infante
Henrique, enquanto regedor do Mestrado de Cristo, do infante João, enquanto regedor
do Mestrado de Santiago, assim como do Prior do Hospital e dos Abades dos
Mosteiros de Alcobaça e de Santa Cruz, entre outros.
A conclusão
a que Virgínia Rau chega, é tão significativa que merece ser citada in
extenso: À sombra das sesmarias
também o povo miúdo aproveitava para granjear o seu pedaço de terra. Em
sentido próximo, surge a constatação feita mais adiante, de que se a razão que presidia
à dada de terras em sesmaria levava a aligeirar os encargos do agricultor, não convinha ao rei libertar por completo da
sua alçada jurídica e tributária os indivíduos a quem os bens assim eram dados.
O raciocínio é, aliás, imediatamente alargado aos grandes em geral e às Ordens Militares
e Mosteiros em particular. Tudo isto quanto à extensão, tudo parecendo deixar
bem claro que no reino e nos séculos XIV-XV não se trata propriamente de uma
redistribuição de terras, de uma reforma
agrária avant la lettre. Entretanto, outro aspecto central das sesmarias é
o da existência ou inexistência de tributos a pagar pelo produtor, onde são
numerosos os exemplos de terras que ficam isentas, como de outras que cumprem
um conjunto de tributos que não podem deixar de considerar-se pesados. Deve
ainda merecer particular atenção o capítulo 11, onde é analisada a reacção da
nobreza. Da sua conclusão, reafirma-se a ideia de que não nos encontramos face a uma lei agrária tendente somente a
chamar à produtividade fromentária as glebas incultas e desaproveitadas, mas
que se trata, sim, de um violento recurso para aumentar os proventos do erário
régio e, consequentemente, da nação.
Ao longo do
seu trabalho a autora procede com todas as cautelas e faz um levantamento tendencialmente
exaustivo do problema. Mas o livro é publicado em 1945, logo escrito nos anos imediatamente anteriores, e nesta
indiferenciação dos interesses do erário régio e do benefício da nação,
provavelmente inevitável à data, surge talvez um fértil campo para a
subalternização do interesse nobre nas sesmarias e a sobrevalorização dos
interesses populares, ambos fundidos numa
amálgama chamada Nação, onde naturalmente confluem interesses
contraditórios. De qualquer modo uma
situação clara: as sesmarias, tal como a restante legislação fernandina de
compulsão ao trabalho, vão ser aproveitadas, sobretudo, a favor dos terra-tenentes
e mesmo dos grandes senhores detentores de direitos banais, sem que isso exclua
alguns benefícios para sectores populares. Não se trata, portanto, de uma
medida unidireccional, nem como tal deve ser analisada, mas de um conjunto de
medidas aplicadas primeiro no reino e, num segundo momento, alargadas a todo o
império atlântico, sempre com o objectivo de consolidar o sistema e fixar
populações. O primeiro ponto de construção do império atlântico será o
arquipélago da Madeira, para o qual dispomos de uma ampla documentação e de um
satisfatório conjunto de estudos, incluindo-se, entre os primeiros, um
fragmento de uma carta do monarca João I, que coloca o problema da dada de
terras com uma grande clareza, definindo explicitamente duas categorias a quem
a terra será distribuída diferentemente. Em primeiro lugar, os de maior e que possanças tiverem, que
recebem a terra forra e sem pensão alguma, e sem que fique explicitado qualquer
limite quantitativo». In Miguel Jasmins Rodrigues, Sesmarias no
Império atlântico português, Instituto de Investigação Científica Tropical, Departamento
de Ciências Humanas, Actas do Congresso Internacional Espaço Atlântico de
Antigo Regime: poderes e sociedades, Comunicações, Wikipédia.
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