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Parei debaixo do Arco do Triunfo para olhar a avenida, a longa e admirável
avenida estrelada, indo até Paris entre duas linhas de fogo e os astros! Os
astros lá no alto, os astros desconhecidos jogados ao acaso na imensidão, onde
desenham essas figuras estranhas que tanto fazem sonhar, que tanto fazem
pensar. Entrei no Bois de Boulogne e lá fiquei muito tempo, muito tempo. Estava
tomado por um arrepio singular, uma emoção imprevista e poderosa, uma exaltação
de meu pensamento que raiava a loucura. Andei muito tempo, muito tempo. Depois
voltei. Que horas eram quando tornei a
passar sob o Arco do Triunfo? Não sei. A cidade adormecia, e nuvens,
grossas nuvens pretas, espalhavam-se lentamente no céu. Pela primeira vez senti
que algo estranho, novo, ia acontecer. Tive a impressão de que fazia frio, de
que o ar se adensava, de que a noite, minha noite bem-amada, pesava sobre meu
coração. Agora a avenida estava deserta. Só dois polícias passeavam perto da
estação dos fiacres, e na rua
apenas iluminada pelos bicos de gás que pareciam moribundos, uma fila de carroças
de legumes ia para os Halles. Iam devagar, carregadas de cenouras, nabos
e repolhos. Os cocheiros dormiam, invisíveis; os cavalos andavam no mesmo
passo, seguindo a carroça da frente, sem barulho, pela calçada de madeira.
Diante de cada luz da calçada, as cenouras iluminavam-se, vermelhas, os nabos iluminavam-se,
brancos, os repolhos iluminavam-se, verdes; e essas carroças passavam uma atrás
da outra, vermelhas como o fogo, brancas como a prata, verdes como a esmeralda.
Fui atrás delas, depois virei na rua Royale e voltei para os bulevares. Mais ninguém, mais nenhum
café iluminado, apenas alguns retardatários que se apressavam. Nunca tinha
visto Paris tão morta, tão deserta. Puxei meu relógio, eram duas horas.
Uma
força empurrava-me, uma necessidade de andar. Portanto, fui até à Bastilha. Lá
percebi que nunca tinha visto uma noite tão escura, pois nem sequer distinguia
a Colonne de Juillet, cujo Génio dourado estava perdido no breu
impenetrável. Um firmamento de nuvens, cerrado como a imensidão, afogara as
estrelas e parecia descer sobre a terra para liquidá-la. Retornei. Não havia
mais ninguém ao meu redor. Porém, na praça Du Chateau-d'Eau um bêbado
quase me deu um encontrão, depois desapareceu. Por algum tempo ouvi o seu passo
desigual e sonoro. Eu ia andando. Na altura do Faubourg Montmartre
passou um fiacre, descendo na direcção
do Sena. Chamei-o. O cocheiro não respondeu. Perto da rua Drouot, uma mulher
zanzava: Ei, cavalheiro, escute. Apertei
o passo para evitar a sua mão estendida. Depois, mais nada. Na frente do
Vaudeville, um sem abrigo vasculhava a sarjeta. A sua pequena lanterna
tremulava bem rente ao chão. Perguntei-lhe: Que
horas são, meu amigo? Ele respondeu: E eu lá sei! Não tenho relógio. Então, de repente, reparei
que os lampiões de gás estavam apagados. Sei que nesta época do ano eles são
apagados bem cedo, antes do amanhecer, por economia; mas o dia ainda estava
longe, tão longe de raiar! Vamos para os
Halles, pensei, pelo menos lá
encontrarei vida. Pus-me a caminho, mas não enxergava nada nem mesmo para
me orientar. Ia andando devagar, como se anda num bosque, contando as ruas para
reconhecê-las. Defronte do Credit Lyonnais um cão rosnou. Virei na De Grammont,
perdi-me; deambulei, depois reconheci a Bolsa pelas grades de ferro que a
cercavam. Toda a Paris dormia, com um sono profundo, apavorante. Mas ao longe andava
um fiacre, talvez aquele que tinha
passado por mim ainda agora. Tentei alcançá-lo, indo na direcção do ruído das
suas rodas, pelas ruas solitárias e negras, negras, negras como a morte. Perdi-me
de novo. Onde estava? Que loucura
apagar o gás tao cedo! Nem um passante, nem um retardatário, nem um vagabundo,
nem um miado de gato apaixonado. Nada. Mas
onde estavam os polícias? Pensei: Vou
gritar, eles virão. Gritei. Ninguém respondeu.
Chamei
mais alto. A minha voz foi-se, sem eco, fraca, abafada, esmagada pela noite,
por aquela noite impenetrável. Berrei: Socorro!
Socorro! Socorro!. O meu apelo desesperado ficou sem resposta. Que horas eram? Puxei o relógio,
mas não tinha fósforos. Escutei o leve tiquetaque do pequeno mecanismo com uma
alegria desconhecida e estranha. Ele parecia viver. Eu já não estava tao
sozinho. Que mistério! Recomecei a andar como um cego, tacteando os muros com a
minha bengala, e a toda hora levantava os olhos para o céu, esperando que enfim
o dia raiasse; mas o espaço estava negro, todo negro, mais profundamente negro
que a cidade. Que horas podiam ser?
Parecia que eu caminhava havia um tempo infinito, pois as minhas pernas
amoleciam debaixo de mim, meu peito arfava, e eu sofria terrivelmente de fome.
Resolvi bater no primeiro portão. Puxei o botão de cobre e a campainha retiniu
sonora na casa; retiniu estranhamente, como se esse ruído vibrante estivesse sozinho
naquela casa. Esperei, não responderam, não abriram a porta. Toquei de novo;
esperei mais, nada. Tive medo! Corri para a residência seguinte, e vinte vezes em
seguida fiz a campainha ressoar no corredor escuro onde devia dormir o zelador.
Mas ele não acordou, e fui mais longe, puxando com toda a forca as argolas ou
os botões, batendo com os pés, a bengala e as mãos nas portas obstinadamente fechadas.
E
de repente percebi que estava a chegar aos Halles. O mercado estava deserto,
sem um ruído, sem um movimento, sem um carro, sem um homem, sem um molho de
legumes ou um ramo de flores, as barracas estavam vazias, imóveis, abandonadas,
mortas! Invadiu-me um pavor, horrível. O
que estava a acontecer? Ah, meu Deus! O que estava a acontecer? Fui embora. Mas a hora? A hora?
Quem me diria a hora? Nos
campanários ou nos monumentos nenhum relógio batia. Pensei: Vou abrir o vidro do meu relogio e sentir os
ponteiros com os dedos. Puxei o meu relógio... ele já não funcionava...
estava parado. Mais nada, mais nada, mais nenhum arrepio na cidade, nenhum
clarão, nenhum vestígio de som no ar. Nada! Mais nada! Nem mesmo o ruído longínquo
do fiacre andando, mais nada! Eu
estava nos cais, e subia do rio uma brisa glacial. O Sena ainda corria? Quis saber, encontrei a escada,
desci... Eu não ouvia a torrente encapelando sob os arcos da ponte... Mais degraus...
depois, areia... lama... depois a água... molhei o braço... ele corria...
frio... frio... frio... quase gelado... quase seco... quase morto. E senti
perfeitamente bem que nunca mais teria força para subir de novo... e que ia
morrer ali... eu também, de fome, de cansaço, e de frio». In Guy de Maupassant, A noite, extraído de Contos fantásticos do século XIX, tradução de
Rosa D’Aguiar, Companhia das Letras, São Paulo, Biblioteca do Esquerda.
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