domingo, 4 de janeiro de 2015

A noite. Guy de Maupassant. «Toquei de novo; esperei mais, nada. Tive medo! Corri para a residência seguinte, e vinte vezes em seguida fiz a campainha ressoar no corredor escuro onde devia dormir o zelador»

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«(…) Parei debaixo do Arco do Triunfo para olhar a avenida, a longa e admirável avenida estrelada, indo até Paris entre duas linhas de fogo e os astros! Os astros lá no alto, os astros desconhecidos jogados ao acaso na imensidão, onde desenham essas figuras estranhas que tanto fazem sonhar, que tanto fazem pensar. Entrei no Bois de Boulogne e lá fiquei muito tempo, muito tempo. Estava tomado por um arrepio singular, uma emoção imprevista e poderosa, uma exaltação de meu pensamento que raiava a loucura. Andei muito tempo, muito tempo. Depois voltei. Que horas eram quando tornei a passar sob o Arco do Triunfo? Não sei. A cidade adormecia, e nuvens, grossas nuvens pretas, espalhavam-se lentamente no céu. Pela primeira vez senti que algo estranho, novo, ia acontecer. Tive a impressão de que fazia frio, de que o ar se adensava, de que a noite, minha noite bem-amada, pesava sobre meu coração. Agora a avenida estava deserta. Só dois polícias passeavam perto da estação dos fiacres, e na rua apenas iluminada pelos bicos de gás que pareciam moribundos, uma fila de carroças de legumes ia para os Halles. Iam devagar, carregadas de cenouras, nabos e repolhos. Os cocheiros dormiam, invisíveis; os cavalos andavam no mesmo passo, seguindo a carroça da frente, sem barulho, pela calçada de madeira. Diante de cada luz da calçada, as cenouras iluminavam-se, vermelhas, os nabos iluminavam-se, brancos, os repolhos iluminavam-se, verdes; e essas carroças passavam uma atrás da outra, vermelhas como o fogo, brancas como a prata, verdes como a esmeralda. Fui atrás delas, depois virei na rua Royale e voltei para os bulevares. Mais ninguém, mais nenhum café iluminado, apenas alguns retardatários que se apressavam. Nunca tinha visto Paris tão morta, tão deserta. Puxei meu relógio, eram duas horas.
Uma força empurrava-me, uma necessidade de andar. Portanto, fui até à Bastilha. Lá percebi que nunca tinha visto uma noite tão escura, pois nem sequer distinguia a Colonne de Juillet, cujo Génio dourado estava perdido no breu impenetrável. Um firmamento de nuvens, cerrado como a imensidão, afogara as estrelas e parecia descer sobre a terra para liquidá-la. Retornei. Não havia mais ninguém ao meu redor. Porém, na praça Du Chateau-d'Eau um bêbado quase me deu um encontrão, depois desapareceu. Por algum tempo ouvi o seu passo desigual e sonoro. Eu ia andando. Na altura do Faubourg Montmartre passou um fiacre, descendo na direcção do Sena. Chamei-o. O cocheiro não respondeu. Perto da rua Drouot, uma mulher zanzava: Ei, cavalheiro, escute. Apertei o passo para evitar a sua mão estendida. Depois, mais nada. Na frente do Vaudeville, um sem abrigo vasculhava a sarjeta. A sua pequena lanterna tremulava bem rente ao chão. Perguntei-lhe: Que horas são, meu amigo? Ele respondeu: E eu lá sei! Não tenho relógio. Então, de repente, reparei que os lampiões de gás estavam apagados. Sei que nesta época do ano eles são apagados bem cedo, antes do amanhecer, por economia; mas o dia ainda estava longe, tão longe de raiar! Vamos para os Halles, pensei, pelo menos lá encontrarei vida. Pus-me a caminho, mas não enxergava nada nem mesmo para me orientar. Ia andando devagar, como se anda num bosque, contando as ruas para reconhecê-las. Defronte do Credit Lyonnais um cão rosnou. Virei na De Grammont, perdi-me; deambulei, depois reconheci a Bolsa pelas grades de ferro que a cercavam. Toda a Paris dormia, com um sono profundo, apavorante. Mas ao longe andava um fiacre, talvez aquele que tinha passado por mim ainda agora. Tentei alcançá-lo, indo na direcção do ruído das suas rodas, pelas ruas solitárias e negras, negras, negras como a morte. Perdi-me de novo. Onde estava? Que loucura apagar o gás tao cedo! Nem um passante, nem um retardatário, nem um vagabundo, nem um miado de gato apaixonado. Nada. Mas onde estavam os polícias? Pensei: Vou gritar, eles virão. Gritei. Ninguém respondeu.
Chamei mais alto. A minha voz foi-se, sem eco, fraca, abafada, esmagada pela noite, por aquela noite impenetrável. Berrei: Socorro! Socorro! Socorro!. O meu apelo desesperado ficou sem resposta. Que horas eram? Puxei o relógio, mas não tinha fósforos. Escutei o leve tiquetaque do pequeno mecanismo com uma alegria desconhecida e estranha. Ele parecia viver. Eu já não estava tao sozinho. Que mistério! Recomecei a andar como um cego, tacteando os muros com a minha bengala, e a toda hora levantava os olhos para o céu, esperando que enfim o dia raiasse; mas o espaço estava negro, todo negro, mais profundamente negro que a cidade. Que horas podiam ser? Parecia que eu caminhava havia um tempo infinito, pois as minhas pernas amoleciam debaixo de mim, meu peito arfava, e eu sofria terrivelmente de fome. Resolvi bater no primeiro portão. Puxei o botão de cobre e a campainha retiniu sonora na casa; retiniu estranhamente, como se esse ruído vibrante estivesse sozinho naquela casa. Esperei, não responderam, não abriram a porta. Toquei de novo; esperei mais, nada. Tive medo! Corri para a residência seguinte, e vinte vezes em seguida fiz a campainha ressoar no corredor escuro onde devia dormir o zelador. Mas ele não acordou, e fui mais longe, puxando com toda a forca as argolas ou os botões, batendo com os pés, a bengala e as mãos nas portas obstinadamente fechadas.
E de repente percebi que estava a chegar aos Halles. O mercado estava deserto, sem um ruído, sem um movimento, sem um carro, sem um homem, sem um molho de legumes ou um ramo de flores, as barracas estavam vazias, imóveis, abandonadas, mortas! Invadiu-me um pavor, horrível. O que estava a acontecer? Ah, meu Deus! O que estava a acontecer? Fui embora. Mas a hora? A hora? Quem me diria a hora? Nos campanários ou nos monumentos nenhum relógio batia. Pensei: Vou abrir o vidro do meu relogio e sentir os ponteiros com os dedos. Puxei o meu relógio... ele já não funcionava... estava parado. Mais nada, mais nada, mais nenhum arrepio na cidade, nenhum clarão, nenhum vestígio de som no ar. Nada! Mais nada! Nem mesmo o ruído longínquo do fiacre andando, mais nada! Eu estava nos cais, e subia do rio uma brisa glacial. O Sena ainda corria? Quis saber, encontrei a escada, desci... Eu não ouvia a torrente encapelando sob os arcos da ponte... Mais degraus... depois, areia... lama... depois a água... molhei o braço... ele corria... frio... frio... frio... quase gelado... quase seco... quase morto. E senti perfeitamente bem que nunca mais teria força para subir de novo... e que ia morrer ali... eu também, de fome, de cansaço, e de frio». In Guy de Maupassant, A noite, extraído de Contos fantásticos do século XIX, tradução de Rosa D’Aguiar, Companhia das Letras, São Paulo, Biblioteca do Esquerda.

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