«Desde
Kant que os matemáticos nos acostumaram a considerar o tempo como uma forma a priori da nossa intuição; ligado ao espaço
tridimensional, o tempo constitui a quarta dimensão do universo em expansão. Contudo,
sentimos uma espécie de contracção no nosso pensamento quando julgamos captar o
tempo; sentimos que há mais no possível do que no existencializado, nos dados
do problema do que nas suas soluções, na procura do que nas invenções. O tempo 4ª dimensão de Minkowski
continua a ser discutível. Um pensamento religioso que tende para um monoteísmo
transcendente, como é o Islamismo, tem uma visão totalmente diferente do tempo.
Não se trata de o inventar, o tempo é que nos revela a ordem (amr) de Deus, esse fiat (kun, kûni) que
provoca os nossos actos de pessoas responsáveis. Por conseguinte, para, o
teólogo muçulmano, o tempo não é uma duração
contínua, é uma constelação, uma via láctea
de instantes (tal como o tempo não existe, o que existe são apenas pontos).
A heresiografia condena como materialistas os Dahriyûn, os filósofos que divinizam a Duração (dahr). Para o Islamismo, que é
ocasionalista e só descobre a causalidade divina na sua eficiência actual, só existe o instante,
hîn, ân, piscadela de olho:
lamh albasar, anúncio lacónico de uma
decisão judiciária de Deus, que confere ao nosso acto nascente o seu estatuto (hukm): que será proclamado no Dia em que
se ouvir o Clamor de Justiça.
Esta
percepção descontínua do tempo em instantes
não é mera subjectividade religiosa. Para toda a comunidade muçulmana, o instante
é como uma revocação autoritária da Lei, tão inevitável como inesperada. O
instante fundamental na vida do Islão surge ao cair da noite, com o primeiro
Crescente do mês lunar, ghurrat
al-hilâl, que declara aberto um
prazo, de duração variável, para o cumprimento litúrgico dessa observância
legal (peregrinação, em primeiro lugar; depois, prazo de isolamento, ou
viuvez?, etc.). Não é permitido prever por meio de tabelas teóricas o primeiro
Crescente, há que espiá-lo, constatá-lo empiricamente, por duas testemunhas do instante. Este método é ainda
hoje o de todo o Islão (à excepção dos Ismaelitas). É o iltimâs al-hilâl. Nisso, o Islamismo aproxima-se da humanidade mais
primitiva, que venera na própria irregularidade das fases da lua a manifestação
de uma Vontade misteriosa independente das estações solares. Quando muito,
tolera-se um calendário muito primitivo, chamado das 28 mansões lunares (364 dias), que fornece empiricamente o
nome da estrela (Najm), ou melhor, da
constelação zodiacal em que se deve espiar a aparição do primeiro Crescente no
fim do mês lunar anterior. O instante marca, ao crepúsculo, o início de um Dia,
yawm, que estabelece uma indicação,
ou épochè, um início de era: é assim
o dia 16 de Julho de 622, dia
inaugural da hégira muçulmana em Medina: são assim, antes dela, os ayyâm al-‘Arab, dado que as lutas
tribais constituem o único calendário real dos árabes antes do Islamismo. Instantes de paragem para as consciências,
que implicam introversão, na memória».
In
Loius Massignon, O Tempo no Pensamento Islâmico e outros textos, tradução de
Maria Figueiredo, Fundação Oriente, Edições Cotovia, Lisboa, 1983, 1997, ISBN
972-8028-98-9.
Cortesia
da FOriente/JDACT