«(…) Pois tentaria ele mesmo um exorcismo. Iria ele, com alguns dos
seus fiéis, e exorcizá-lo-ia. Nem que lhe arrancasse o diabo do corpo puxando-o
à unha cá para fora. Ah, quem lhe dera já o Tribunal do Santo Oficio (maldito) a oficiar em terra sua, e os
autos-de-fé, as fogueirazitas de bom crepitar e o povo em roda, temente, ora a
aplaudir ora a rezar, ora a esperar vez para assar... Dos lados da câmara real
soou um uivo prolongado que despertou a maior atenção de todos em geral e do cardeal
muito em especial. Uiva que logo
berras, pensou, alegre com a perspectiva, o cardeal. Depois, tornou-se
apreensivo e mais alerta: Ou terá sido
o berro de El-Rei, vitimado por estocadas de Bosta? Ao segundo uivo,
sossegou-se. El-Rei tem outro berrar. Foi-se ao armário e abriu-o. Tirou dele
um pote de água benta que o próprio papa abençoara; um crucifixo de ferro; uma
chibatinha que, na ponta, deixava pender sete tiras de coiro e de cada uma
destas uma bolinha, grossa, de ferro; um missal forrado a pele; uma clava com
espinhos na extremidade do bater... Que bem lhe faria voltar a exorcizar! O
terceiro uivo fendeu os ouvidos do cardeal e fê-1o persignar-se: Espera pela
demora, ó piça do demónio!
O cheiro da pimenta dava-lhe inspiradas ajudas à pituitária, era melhor
do que o da baunilha e o da canela, um gosto. Por isso, mandara-a buscar, em
Março que é a melhor época, todos os anos, mais e mais especiarias dessas. E
como era gosto dispendioso, para El-Rei não arriscar do seu, e porque não podia
suprir tantos gastos, como cumpria em tantas e tão grossas armadas como se requeria,
decidiu que cada ano se fizessem armações e contratos com ricos mercadores
estrangeiros, que folgariam de contratar e armar para a Índia, o que seria somente
com boas naus grossas, para bem carregar para seus fretes; pelo que ficava a
El-Rei mor poder para a conquista que esperava fazer. El-Rei, por isso, moveu contratos
com mercadores ricos que entre si fizeram armador-mor a um Bartolomeu
florentino, homem de grossa fazenda, que fizeram seus apontamentos de seus proveitos
que esperava muito mais proveito que de Flandres, nem outras muitas partes em
que tratavam por todo o poente e levante, sobre o que assentaram contrato, que
El-Rei armou duas naus, e os mercadores outras duas do seu dinheiro, de todos
acabadas e postas à vela e amarinhadas com todos os oficiais que lhes
pertenciam, que haviam de ser a contentamento de El-Rei, todos naturais do
reino, e El-Rei os havia de armar de artilharia, armas, munições, e fazer os
mantimentos para toda a viagem, e metia as mercadorias que se haviam de carregar
de pimenta e de cada sorte de drogas, segundo o que a nau podia carregar; e o
pagamento havia de ser em dinheiro de contado, descarregada e entregue a
mercadoria na casa, emprestando-lhe logo a cada nau sobre seu frete oito mil
cruzados.
Ao que se sabe, não eram estas decisões obra firme de El-Rei que as não
concebia, mas de um tal António que o servia para pensamentos sensatos de actos
administrativos. E tudo isto só interessa, por ser António responsável por
estes negócios, e amigo de há muito de Bosta e que, por isso, lhe fornecia
agora doses novas das boas drogas de que ele, viciado, andava cada vez mais a
carenciar. Pobre Ataíde, conhecedor dos seus limites e alucinações, queria
deixar tudo como antes e não podia. E oscilando entre a vontade de libertar-se
e a triste doença de drogado, ia e vinha em mil contradições e, pelo intervalo,
derrubava à todos os que podia. Foi num dia de maior mortificação que Ataíde
decidiu. Como um eremita, exilar-se-ia na serra até as vontades acalmarem,
mesmo que mil ressacas o batessem, sairia do triste espaço da alucinada morte
em vida que sofria. Pegou nalguns pertences e fugiu, levando mais com ele a
determinação do que coisas da sua fazenda...
O cardeal coordenava a reunião. Reuniam-se ali muitos homens mais ou
menos sábios de várias ordens e diversas convicções religiosas e teológicas,
todos tementes a Deus, mas cada qual à sua maneira, e que em pouco convergia. Havia,
no vasto grupo, os militares, de Cristo, Santiago e Avis que, de há uns tempos
a esta parte, não obedeciam a ninguém e, em vez de eleitos nos termos dos
estatutos, tinham passado a ser nomeados pelo papa. Várias razões políticas,
entre as quais os votos dos povos expressos em cortes aconselhavam a união dos
mestrados à coroa, e El-Rei chegara a obter algumas concessões, porém muito
débeis e pouco a gosto seu. Pouco antes, com o outro papa, o tal Alexandre
VI, os cavaleiros de Avis e de Cristo haviam sido dispensados do voto de
castidade, pelo que andavam sempre muito sorridentes e em serviço ocupado,
dizia-se deles que arejavam a gónada, vá lá descobrir-se o que isso seja... Leão
X fora mais longe, e dispensara-os do voto de pobreza, da recitação das horas
canónicas, do uso do hábito e outros artigos de regra. Tornaram-se uns desbragados».
In
Alexandre Honrado, Os Venturosos, Círculo de Leitores, Braga, 2000, ISBN
972-42-2392-2.
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